[…] Mestre Visconti, deu-me sempre a feliz impressão de um beneditino, enclausurado em si mesmo, coberto com o burel de seu sonho interior. Mestre Visconti era um homem devotado à sua grande arte, vivendo apaixonadamente para a sua gloriosa vida. Trabalhador infatigável, sempre descontente com o que fazia, não aprovando nunca o que havia realizado, Mestre Visconti era o que se podia dizer sem receio de errar e de cometer paradoxo:
Era o maior inimigo de si mesmo. Daí ter morrido sem conhecer a decadência, sem ter desaparecido em vida, sem que [p. 11] o melancólico crepúsculo das existências tristes, amarguradas, tivesse amortalhado o seu espírito, o seu corpo.
[…] Homem simples, simples em tudo, sem rebuscamentos e sem ser cabotino, era sem dúvida um imaginativo, um sonhador, talvez o mais sutil colorista de nossa pintura. Êle não chamava atenção do público pelo disparate, pelo grotesco das atitudes e de sua maneira de pintar que era sempre admirável.
Simples no falar, modesto no vestir, não se preocupando com o superficial, […]
Em vida foi um autêntico triunfador. A sua bela cabeça, em tôda a sua existência maravilhosa foi coberta por louros sempre verdes. Nunca envelheceu, nunca conheceu o inverno do pensamento, viveu sempre em pleno verão e aureolado de primaveras; parece, porém, que a origem dêsse vivo interêsse pela vida e pela arte, se encontra no dualismo de seu espírito fortalecido pela origem de seu atavismo racial.
Si para Taine o artista era fruto de seu meio, mestre Visconti não foi, em nada, produto de seu ambiente, mas sim de seu atavismo racial.
Todos nós sabemos que o egrégio mestre nasceu em Salerno, Itália e si observarmos, atentamente, toda a sua produção, podemos com o poder da análise chegarmos a conclusão, que êle foi acima de tudo um latino, talvez [p. 12] acertadamente um néo-latino, porque si em suas veias corria o sangue generoso do Latium, como vinho caldeado de civilizações remotas e o seu corpo desde a infância estava habituado aos trópicos, ao calor da natureza brasileira, é bem certo ainda que tendo nascido em Salerno e onde foi, traduzido Aristóteles, Mestre Visconti recebera, do berço, a atmosfera helênica, porque sua cidade natal respira de perto o ar grego e, ainda, possui sua arte espírito bisantino.
Fácil se torna, pois, num rápido exame identificar seu atavismo racial, mesmo vivendo tôda a sua vida sob a bênção do Cruzeiro do Sul. Si Mestre Visconti não tivesse a sua origem na pátria milagrosa de Ghirlandajo, não poderia, por certo, pintar e sentir de maneira tão comovente o Apolo do Cristianismo: S. Sebastião que talvez seja a sua obra prima. Aí se encontra, evidentemente, o latino. E o heleno? e o artista grego, não está, evidentemente, na inspiração
das “Oreades”?
É bem certo que há nesse quadro a graça boticeliana, mas longe está da técnica do mestre florentino que pincelava, igualmente, e com a mesma emoção centauros e madonas. Não faz lembrar as “Oreades”, um baixo relêvo em côres que tivesse descido da “Acrópole”? Não é um poema primaveril, um cântico vibrante e gracioso a mocidade que dança, alegremente, entre asas, árvores, numa sarabanda grácil, movimentada e onde se sente o belo verso de Marcel Proust: “Poussière de baisers autour de bouches lasses…”
Estou certo que si Renan tivesse visto as “Oreades”, teria dito novamente “Si a Grécia tudo criou, a Itália tudo fez reviver…” [p. 13]
Para estudar a vida e a obra de um artista necessário se torna o exame de todos os seus contornos, de todos os seus ângulos, mesmo os mais obscuros ou mais contraditórios. Não tenho receio em afirmar que, principalmente, nas primeiras etapas da técnica e sobretudo da inspiração, da gênese da obra viscontiana há, com abundante evidência, o influxo racial de forte poder emotivo. Mestre Visconti amava, sinceramente o Brasil acima de tôdas as Pátrias, porém si compararmos a sua epiderme pictórica, a “pulpe” de sua pintura, podemos verificar que ela sofre influências estranhas, principalmente da Itália. Da Espanha, mesmo copiando Velasquez, mestre Visconti não recebeu marca profunda, indelével. O gênio criador de “Las Meninas”, não contribuiu fortemente, no ilustre autor do “Retrato de Gonzaga Duque, nem tão pouco no de Nicolina”, apesar do realismo magnífico dêsses dois soberbos trabalhos.
Já a França de Henri Martin e de outros mestres, inclusive Aman-Jean, tem influência e muito expressiva na formação artística do Mestre. Si dividirmos em fases a pintura do grande pintor podemos encontrá-la em poucos quadros que são modelos muito ricos e que determinam etapas diferenciais: “Recompensa de São Sebastião”; observação forte, latente, dos italianos, notadamente dos primitivos e acentuada inspiração na côr de Mantegna que está no “Louvre” e que tem por motivo, também o “Santo Martyr”; “As Oreades” ainda, influência itálica, com
sabor heleno, com inspiração na mitologia. Nos retratos da primeira fase e em alguns nus de estupendo modelado, o seu realismo é patente.
Nas decorações a influência francesa do pontilhismo e, por último, aquela em que o mestre aparecia ùltimamente no [p. 14] “Salão”, e que na mesma parece, salvo engano, ter permanecido. Refiro-me a da superposição de tons. Já Segantini dividia as tonalidades e realizava com a sua admirável técnica um minúsculo mosaico em côres as mais infinitas, dando-nos por vêzes, a impressão de um maravilhoso vitral em miniatura.
Ainda êste ano o pranteado mestre expôs no “Salão” obedecendo a técnica, a maneira da justaposição da côr, por meio de pequenas pinceladas superpostas e dir-se-ia que a sua pintura vinha de dentro para fora, devido a sua técnica de colocar as côres umas sôbre as outras, em tonalidades de pastel, em meias tintas deliciosas, encantadoras, sem procurar cobrir, inteiramente, o que já havia excutado anteriormente. O efeito dessa maneira é verdadeiramente
maravilhoso e só um autêntico mestre realiza. Não sei de tôdas as etapas, de tôdas as fases do grande pintor, qual a melhor; tôdas foram boas, direi com justo acêrto: magníficas.
Mestre Visconti foi um pesquisador, um analista meticuloso e consciente, um anatomista cauteloso, sutil e cheio de ciência. Si em verdade, não inventou, não criou ou descobriu novas fórmulas técnicas de pintar, em verdade também não deformou, não cultuou o grotesco e, nem tão pouco confundiu o belo com o bonito; nem ainda chamou a atenção pelo monstruoso, pelo teratológico. Não foi em absoluto, um anarquista da forma, um dinamitador da tradição e, nem tão pouco retocou, rebuscou ou plagiou quadros alheios, para passar apressadamente, por gênio inovador e aproveitar os tempos que correm…
Mestre Visconti manteve-se fiel à sua lógica que era avançar, progredir, porém dentro do equilíbrio e essa [p. 15] harmonia vem de sua raça, da origem de seu natalício na Itália, que recebeu o influxo civilizador da Grécia. Aquela longínqua Salerno cantou sempre, misteriosamente, na alma lírica do pintor que, talvez sem sentir, nem mesmo adivinhar, quando pintou as “Oreades” estava realizando a transfiguração de duas pátrias numa tela: A Grécia e a
Itália!
[…]
O nobre artista que o Brasil perdeu sabia como poucos comover com sua arte que alcançou grandes culminâncias. Era, sem dúvida, privilegiado, dotado de grande requinte espiritual, muito pessoal e cheio de recato. Era assim em família, com seus colegas e com sua notável arte de pintar e ver a vida. Não era em absoluto um triste, sabia sorrir, e [p. 16] por vêzes, de maneira anatoliana e por que não dizer: quase sempre com razão.
O seu otimismo, não se poderia dizer que era completo, sempre havia um pouco de ceticismo, porém com a finalidade de atingir a perfeição. […]
Mestre Visconti foi em tôda sua existência um lutador, um infatigável trabalhador, um homem honesto, sincero consigo e com os demais. Sabia criticar, por vêzes com aspereza, mas nele havia o sentido humano de construir e melhorar. Era um inimigo declarado do triunfo fácil e do cabotinismo, por isso, legou-nos uma obra admirável, uma altiva e nobre lição de beleza e de caráter. Com a sua arte a juventude do Brasil só terá a lucrar, porque não é a apologia da mentira, porque só representa a verdade de que êle era um apóstolo cheio de fé e de severidade.
O Brasil, que ele tanto venerou, respeitou e serviu, deve tê-lo como um de seus autênticos filhos, porque Visconti não desejava ser outra coisa senão brasileiro. Que importa que tivesse nascido na Itália si o seu coração e seu espírito nos pertence legitimamente, porque êle assim o quis e devotadamente se entregou ao nosso país, num gigantesco labor de mais de meio século!
Louvo, pois, a obra e a vida gloriosa de Mestre que se entregou de corpo e alma a arte brasileira que não deve com tão grande exemplo decair, para que possa assim [p. 17] atingir mais alto, ou possa permanecer com segurança naquilo que os mestres nos doaram carinhosamente, como patrimônio legitimo da beleza.
Para que Mestre Visconti tanto se sacrificou, tanto fez vibrar o seu coração de artista? De certo não foi nem será uma inutilidade o seu incomparável esfôrço. Penso, que foi, por certo, para elevar a nossa arte, a arte brasileira que êle tanto serviu e, principalmente, para a grandeza da terra, da terra prodigiosa que êle tanto amou: o Brasil! [p. 18]