Frederico Barata

"Um pintor que não morreu" em "Eliseu D’Angelo Visconti". Rio de Janeiro: Gráfica Sauer/ Biblioteca da Academia Carioca de Letras - 1944

Falar-vos da obra tôda de Eliseu Visconti no curto espaço de tempo de uma palestra como esta, é tarefa à qual não me proponho. Ela é grande demais para caber na pequena moldura das minhas palavras.
[…]
Nestes últimos 25 anos acompanhei com admiração crescente, que se desenvolvia à medida que lhe ia conhecendo os detalhes, a obra de Eliseu Visconti.

CURA DE SOL - OST - 157 x 104 cm - 1919 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
CURA DE SOL – 1919

Através dela fiz-me seu amigo, dos mais íntimos, e o convívio com o homem só fêz valorizar ainda mais o artista, vendo-o trabalhar e conhecendo-lhe as idéias e o caráter. Por isso creio poder afirmar-vos [p. 21] que esta homenagem é justíssima e que, promovendo-a, estamos rigorosamente certos no nosso
julgamento, sem o risco de que o futuro nos venha a corrigir. Muitas vêzes essa minha admiração pela obra de Eliseu Visconti não se conformava com o olvido em que, no caos de tendências e rumos cuja eclosão se verifica entre nós várias décadas depois do seu aparecimento no Velho Mundo, era deixado no meio brasileiro êsse mestre de
porte raro mesmo entre os maiores pintores do Brasil.
Consolava-me a idéia, ao ver diàriamente glorificados por muitos de vós, o homens de letras, e por muitos de nós, os jornalistas, certos valores efêmeros, dêsses que são moda e não resistem ao tempo, e que as gerações vindouras certamente ignorarão, – consolava-me a idéia de que no passado, aqui ou alhures, nunca foi de outro modo e que indiferença ou incompreensão momentâneas do valor da obra de Eliseu Visconti era êrro que, no caso dêsse grande pintor, não diferia do êrro de Jules Claretie e Albert Wolff em relação aos impressionistas, ou do êrro enorme da velhice de Zola em relação a Cézanne.
Mas a verdade é que – e daí o regozijo que me causa êsse gesto vosso – nos últimos quinze anos em que frequentei assìduamente o “atelier” de Eliseu Visconti, antes do súbito interêsse pelas coisas de arte provocado pelo alastramento da guerra, encontrei-o sempre só, raramente visitado por um reduzido grupo de discípulos e aqui fora, excetuados alguns círculos de pintores e de poucos amadores entusiastas, como José Mariano e Benjamim de Mendonça, sua obra não encontrava a ressonância a que tinha direito. [p. 22]
Nesse longo período, pintando sempre, ininterruptamente, pouquíssimos quadros vendeu Eliseu Visconti, embora expusesse, assiduamente, no Salão. E seu “atelier” ia, em consequência, sendo povoado de telas e mais telas, de retratos, paisagens, estudos e esbocetos que seus pincéis produziam incansàvelmente, atendendo a um irrefreável apêlo interior, pintando para si mesmo, sem qualquer objetivo comercial, sem nenhuma preocupação nesse sentido, sem outra ambição que não fosse o prazer do trabalho, cheio de amor, fé e desprendimento.
Êle mesmo, se lhe perguntásseis, não saberia dizer porque pintava. Pintava porque sentia, espiritual e orgânicamente, a necessidade de pintar, atento à expressão puramente plástica, na ânsia de aprimorar os meios de manifestação, de exceder-se a si próprio, mais para satisfação sua do que nossa.
Com Rodolfo Amoedo, Henrique Bernardelli J. Medeiros e Zeferino da Costa, aprendeu um ofício – o ofício do pintor. Mas foi consigo mesmo, passando na Europa por um estágio útil de observação dos mestres, principalmente do venezianos, que aprendeu algo mais sério e mais profundo que é a pintura pròpriamente dita, a pintura que nos deu na madureza e que vale independentemente da influência que possam ter sôbre os nossos sentidos os temas que
representa.
Não se contentou em pintar por moldes ou imitar o já feito. Criou. Plasmou um estilo. Firmou uma personalidade. E por isso, porque ultrapassou os limites do ofício, é ele o grande pintor que é.
Alguém já afirmou que a decadência da pintura começa quando da necessidade de criar se passa, ensencivelmente, ao [p. 23] desejo de imitar. Êsse estado de decadência nunca o encontrareis em Eliseu Visconti.
Ainda um dia dêstes, em uma casa comercial nas imediações da Avenida, vi exposta uma paisagem sua, de 1891, de quando era ainda aluno da Escola. Que promissora personalidade revelava já a êsse tempo, na adolescência! (…) Eliseu Visconti vinha da Academia e, evidentemente, numa obra dêsse tempo têm de ser latentes as influências limitadoras. Na paisagem a que me refiro, falta ainda o sentido do ar livre, da luz luminosa, da côr liberta da tirania dos terras. Ide porém olhá-la, senhoras e senhores, para que possais aquilatar por vós mesmos, comaparando-a com o que se tem feito depois no Brasil, da fôrça que ela nos mostra do grande pintor que surgia! Eliseu Visconti podia ter parado aí, variando apenas os temas, e teria feito tanto quanto fez a maioria dos seus contemporâneos. Sua personalidade, porém, era argamassada na insatisfação, no movimento, na evolução. Não pararia nunca. Ele repetia
sempre, a discípulos e amigos, que a Arte é movimento e que ao artista, eterno insatisfeito, como à vida, só a morte poderá deter. E só ela, com efeito, o deteve.
* * *
Com a pintura não gosto de ver misturada a literatura. Tenho para mim que a pintura vale por si mesma, pelo seu valor intrínseco e não pela inspiração que a ela [p. 24] possamos dar através de sentimentos interpretativos que lhe são alheios ou de emoções que não sejam provocadas pelo seu valor exclusivamente plástico.
Como me sentiria feliz, porém, se tivesse as qualidades literárias de narrador para contar-vos as longas palestras que comigo teve Eliseu Visconti após a sua ressurreição! Durante dois longos meses, em seguida ao acidente ou ao crime de que foi vítima no “atelier”, eu o vi em agonia, cercado no leito pela dedicação infinita da família, extinto como artista, encerrado em uma câmara de respiração artificial, desprovido de conhecimento, imóvel e morto para mim, embora vivo, estivesse ainda para a ciência.
De repente, porém, uma trégua se faz na terrível batalha e a Parca foi vencida. Êle ergueu-se. Andou de novo. Ia pegar de novo nos seus pincéis. Foram vinte e poucos dias de esperanças que renasceram para a sua família e para os seus amigos. E nesses vinte e poucos dias, nas longas palestras que com êle mantive, sua euforia, seus planos para o futuro, as idéias que expendia sôbre a sua arte venerada, deram-me a ilusão que êle de fato havia morrido e ressuscitado, mais jovem, mais lúcido, mais capaz, capaz não sei de que prodígios extraordinários.
– “Nasci de novo! – dizia-me êle contente e “blagueur”. E agora é que vou começar a pintar.
Vocês vão ver!”
Assim que percebeu que as pernas obedeciam novamente à vontade, só em uma coisa pensava, só em uma coisa falava: voltar ao seu “atelier”. E voltou. Levamo-lo de automóvel. Foi quando escolheu e preparou os últimos quadros, um dêles pouco antes terminado, que enviaria para o Salão dêste ano. Subiu só, sùbitamente rejuvenescido e revigorado, recusando [p. 25] amparo, os longos degraus da interminável escadaria. E lá, revendo os seus trabalhos, a “Cura de Sol”, a “Vitória de Samothrace”, as cópias soberbas das “Niñas”, de Velasquez, os retratos da família, parecia que se transmudara por efeito de um milagre. Só para aquêle mundo lhe valia realmente a vida!
– “Agora é que vou começar a pintar. Vocês vão ver!”
* * *
[…]
Eliseu Visconti era assim, também, que compreendia a própria obra! Recomeçara-a inúmeras vêzes. A vida que lhe fôra devolvida só valia por isso, pela oportunidade que lhe daria de recomeçar ainda uma vez.
– “Agora é que vou começar a pintar. Vocês vão ver!”
Pobre e querido amigo e Mestre! A ressurreição durou pouco. Logo em seguida foi a recaída e foi o Fim. Os pincéis ficaram onde estavam, à espera do museu que os recolherá um dia. O grande sonho, o último, não se realizou.
– “O que falta às gerações de hoje – disse-me êle num dos dias da sua ressurreição – é a angústia da humildade, da impotência diante dos problemas da pintura que parecem [p. 26] simples e são incrìvelmente grandes e complexos! Satisfazem-se ràpidamente com o que fazem e julgam-se mestres, na juventude, quando deviam convencer-se de que até a velhice, até a morte, serão humildes aprendizes”.
Era como si êsse conselho êle estivesse indiretamente querendo definir-se a si próprio. Era como si me dissesse, numa confidência:
– Tôda a minha vida foi humilde diante da minha arte, sofrendo a angústia de realizar o irrealizável, de ultrapassar hoje o que fiz ontem, amanhã o que fiz hoje.
E ao meu cérebro ocorria então a explicação daquele ar modesto e assustador com que recebia a notícia que lhe dei, há três anos, de que ia escrever um livro sôbre a sua vida e a sua obra:
– Sôbre a minha vida e a minha obra? Você acha que vale à pena?
* * *
[…] Ele pintava, como vos disse sem buscar recompensas, sem medir, sem pesar, desconfiado dos elogios e indiferente aos ataques, eu quase diria sem a consciência da relevante missão de que se desincumbia.
Nos três anos finais da sua vida, de súbito, o “atelier” da Avenida Mem de Sá começou a ser invadido por amadores e negociantes sem número. Seu nome crescera e os [p. 27] homens de fortuna, bem sabemos, só fazem com largueza aquisição de quadros quando, em certas épocas de transição, o dinheiro em espécie gera temores e se desvaloriza, ou então quando dizendo “eu tenho um Visconti” isso significa, implìcitamente, que o quadro representa alguns cifrões.
Depois de grande resistência para vender, o Mestre fazia-lhes preços irrisórios, e foi uma luta para convencer-se de que não devia ser assim, de que seus quadros neste nosso mundo cá fora já tinham alto valor material.
Que sincera reprimenda, com aquêle seu jeito nervoso, me passaria êle si me ouvisse dizer aqui, apesar da convicção com que o faço, que êle foi um dos maiores pintores brasileiros!
Sim, senhoras e senhores! É a memória de um grande pintor que estamos aqui evocando com o nosso carinho admirativo. Êle foi um marco que fixa o apogeu de uma época áurea que entrou em declínio e o nascer de uma outra que se acha em plena evolução.
GIOVENTÙ - OST - 1898 - 65 x 49 cm - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ - GIOVENTU - MEDALHA DE PRATA NA EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS EM 1900Foi êle o primeiro a se rebelar contra a rotina da Academia Imperial e sua sucessora, a Escola Nacional de Belas Artes, enveredando por novos e variados rumos e interessando-se pelas inovações revolucionárias que agitavem a Europa nos albores do século.
[… p. 28 …]
Eliseu Visconti, ao contrário, cheio de receptividade para tôdas as manifestações evolutivas, ávido de conhecimentos, sentiu os movimentos impressionistas e neo-impressionistas, compreendendo-lhes a importância, e longe de repeli-los “in-limine” nêles se deteve, utilizando para a própria obra muito das experiências dos gênios inovadores.
Mesmo na velhice não se assustava com os arrojos da juventude. Era, nos derradeiros anos de sua vida, assíduo frequentador das exposições dos artistas mais avançados e, muitas vêzes ouvi dêle, diante dos trabalhos destes jovens, comentários que me deixavam pasmo, vendo um mestre de formação inicial acadêmica aceitar, compreensivamente, com respeito e tolerância, embora por vêzes com restrições, manifestações de arte que a maioria dos seus contemporâneos ainda combate por sistema.
Por isso lhe caberá irrecusàvelmente, na história das nossas artes plásticas, o lugar de um marco, um marco divisório, ponte de transição entre o passado e o presente – o passado acadêmico e conservador e o presente inquieto e ainda não definitivamente caracterizado da pintura nacional.
Já pensastes em que êsse grande mestre, sem nada perder de si mesmo, foi contemporâneo de dois polos opostos, de Vitor Meireles ou Pedro Américo e de Cândido Portinari?
Já refletistes em que, quando o vemos exaltado por Gonzaga Duque, há meio século, antes de que tivéssemos nascido, êle nos parece uma glória muito antiga e dificilmente nos convencemos de que seja uma figura também do nosso [p. 29] tempo, com a qual conversamos e convivemos, antes nos parecendo aureolado já pela pátina do tempo?
Já pensastes em que, diante de trabalhos seus detiveram-se, como chefes do Estado, nas exposições, Pedro II e Getúlio Vargas?
Pois essas reflexões vos darão a medida de uma obra que pôde resistir viva, sem declínios, sem desníveis, antes alçando-se cada vez mais alta, às profundas modificações que nestes cinqüenta anos se operaram na nossa vida política e social, na nossa cultura e, conseqüentemente, na nossa sensibilidade artística.
* * *
Uma vez, há muito tempo, perguntei a Eliseu Visconti o que era, a seu ver, a boa pintura, o que era a Pintura. Pensou, pensou e acabou respondendo-me que não sabia explicar. Dias depois, entretanto, entramos juntos em uma exposição no Pálace Hotel de onde logo convidou-me a sair, dizendo-me:
– Não vamos perder tempo; isto não é pintura.
– Como – indaguei gracejando – pode saber o que não é pintura quem não sabe o que o é?
Riu-se e apenas me redargüiu:
– É assim mesmo.
Hoje, passados alguns anos, quero dizer-vos aqui o que é pintura, como eu a compreendo, para reforçar a minha afirmação de que Eliseu Visconti foi um grande pintor, e encontro-me na mesma dificuldade dele. Como é difícil essa explicação! [p. 30]
[…] Entretanto, o que imortaliza a “Gioconda” como obra de gênio pictórico não são essas qualidades negativas que o leigo aprecia exaltadas pela literatura ou pelas interpretações poéticas. Ela é eterna, como é já eterna a tela de Cézanne, pelas suas qualidades que chamarei de positivas.
Um quadro vale por si mesmo, pelas suas qualidades de matéria, composição, côr, harmonia e estilo, – ou seja simplesmente pelas qualidades de pintura. As qualidades negativas, pela sua influência sôbre os espíritos simples de certas épocas, podem dar notoriedade momentânea ao pintor que a [p. 32] elas se cinge, fazendo moda. Mas a grandeza imperecível do verdadeiro pintor está nas qualidades positivas de sua pintura.
[…] Na história das artes plásticas brasileiras, senhoras e senhores, quero situar Eliseu Visconti como pintor que fêz pintura e que, possuindo embora as qualidades negativas, que fazem os seus quadros agradáveis a todo o mundo, supera-as com qualidades positivas ímpares em nosso meio.
Graças a elas foi que êle pôde atravessar, sempre respeitado e em ascenção, êsse longo período que vem do fim do império conservador aos nossos dias intranquilos e de angústia.
E graças a elas, ainda, sua obra se elevará a níveis imprevisíveis aos olhos das gerações vindouras.
Eis porque, senhoras e senhores, escolhi para título desta palestra “um pintor que não morreu”.
Porque, senhoras e senhores, Eliseu Visconti, de fato não morreu. E não morrerá. [p. 33]