Adalberto Mattos

Rembrandt - Visconti - Recorte de jornal não identificado - c.1920

O texto abaixo de Adalberto Mattos foi encontrado em recorte de jornal colado em álbum organizado por Louise Visconti em 1951, hoje pertencente ao acervo do Projeto Eliseu Visconti. Parte deste texto foi reproduzido na Illustração Brasileira de agosto de 1921. Aqui está transcrita a versão integral do texto.

MATERNIDADE - OST - 165 x 200 cm - 1906 - PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
MATERNIDADE – 1906

Uma versão corre com respeito ao nascimento de Rembrandt. Que o artista viu a luz do mundo em um moinho, o que, porém, não é verdadeiro; autoridades no assunto, como Ricce e Springer, afirmam que seu nascimento teve lugar em Leida, uma pequena cidade da Holanda meridional, em 1606, na casa de seus pais. Em 1627, depois de receber os ensinamentos de Swanenburgh e Pieter Lastman, começou a trabalhar por sua alta recreação, produzindo os quadros “São Paulo na prisão” e o “Velho que dorme”; nesses quadros nota-se já a preocupação do claro escuro, que tanto entusiasmo causa a quantos têm tido a ventura de apreciar obras suas.

O seu primeiro triunfo foi a famosa “Lição de anatomia”, quadro pintado em 1632, em Amsterdam; o fim do quadro foi retratar os membros da corporação de cirurgia de Amsterdam, em torno à mesa de dissecações, assistindo a uma lição de anatomia do Dr. Tulp.

Dessa data em diante, Rembrandt produziu sempre, num crescendo glorioso, desde a grande composição até os maravilhosos retratos, as águas-fortes de sabor fino e entusiasta. Mas…deixemos de lado estas particularidades, pois o fim destes rabiscos não é fazer história, porquanto ela está aí escrita por indivíduos que passaram a existência com o nariz agarrado aos velhos alfarrábios e escritos da época do grande artista, e sim recordar aos leitores a sua maior qualidade e cotejá-lo com o nosso maior artista contemporâneo: Eliseu Visconti.

A pedra de toque dos quadros de Rembrandt é, sem dúvida, a psicologia profunda que caracteriza a sua obra.

Para o grande artista Rembrandt, qualquer motivo servia para um primor, os menores detalhes constituíam para ele o ponto de partida para tornar concretos os pensamentos mais recônditos do seu temperamento.

RETRATO DE GONZAGA DUQUE - OST - 92,5 x 65,0 cm - c.1910 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
RETRATO DE GONZAGA DUQUE – c.1910

O que encanta nos quadros do grande mestre não é somente o desenho, o claro escuro caracterizante para muitos que têm estudado e pesquisado a sua obra, e sim a penetração, o sentimento especial que cada uma de suas figuras possui; enfim, a psicologia. Muito poucos são os indivíduos que os têm encarado por esse prisma, que incontestavelmente é a pedra de toque de toda a sua obra; nos seus autorretratos percebe-se perfeitamente esse característico, principalmente no que é conhecido pela designação de “Olhos ferozes”, executado em água-forte; no S. Matheus (Louvre) o sentimento é flagrante na atitude da figura, não resta dúvida que o incomparável jogo de luz e sobra que ele dava a seus quadros contribui fortemente para a emoção que os estudiosos sentem ao deparar com eles.

Tudo que o artista executou possui a mesma individualidade caracteristicamente definida. Ela é a mesma, tanto na “Ronda noturna” como no “Cristo curando os enfermos”. A expressão de cada figura está resolvida: os movimentos são acordes com o pensamento que se percebe em todas as fisionomias. Dificilmente se encontra uma atitude que não tenha a sua razão de ser e que não case com o conjunto e com a ideia que levou o pintor a executá-la.

Rembrandt não foi somente um pintor genial, foi também um pensador, e a sua variada obra assim o atesta, colocando-o entre os mais férteis indivíduos que a história nos tem ensinado. Tratou a mitologia, o retrato, a grande composição e a paisagem com a mesma elevação de vistas, não se escravizando nunca aos sonhos e às tradições. Os personagens que manejou pertencem todos ao reino da verdade, perfeitamente divorciados do romantismo e dos moldes clássicos.

Justamente os característicos da obra de Rembrandt é que escolhemos para estabelecer o traço de união com o grande pintor patrício Eliseu Visconti; parecerá absurda a pretensão de querermos estabelecer unidade de sentimentos entre dois artistas de épocas diferentes. No entanto, se estudarmos com atenção, verificaremos que os referidos sentimentos são flagrantes.

A emotividade que caracteriza Rembrandt nós encontramos em Eliseu Visconti; a cada passo, como Rembrandt. Eliseu Visconti abraça qualquer motivo indistintamente, sem preocupações, pois, para ele, tanto vale um muro branco como uma bela mulher. O artista encontra sempre razões fortes para dar expansão ao seu temperamento. A sinceridade de um é irmã da do outro, ela predomina em tudo, embora a forma não seja a mesma.

RETRATO DA ESCULTORA NICOLINA VAZ DE ASSIS - OST - 100 x 81 cm - 1905 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
RETRATO DA ESCULTORA NICOLINA VAZ DE ASSIS – 1905

Como Rembrandt, Visconti chega a ser cruel quando pinta um retrato; o retrato de Nicolina Pinto do Couto (Nicolina  Vaz de Assis), pela verdade e pela expressão, pode ser comparado ao delicioso perfil de Saskia, ao da viúva Swartenhaut, pela sobriedade impressionante que toca a alma de todos os que o contemplam! O mesmo entusiasmo dá a Visconti o empreendimento que anima as suas produções; o vigor dos seus quadros é notável. Como dissemos pode parecer absurdo o que encontramos de comunhão entre os artistas citados; mas o que é fato é a mesma abundância de generalidade existente entre ambos, a mesma emotividade, os mesmos sentimentos e o mesmo amor por todos os motivos da natureza, que Visconti ama com amor igual ao que o genial pintor de Ronda tinha pelos assuntos que pintava. Visconti tem dedicado algum tempo da sua vida ao estudo da obra de Velásquez, quer observando a sua obra, quer copiando quadros seus. Copiando, não com aquele espírito que caracteriza o bando de comerciantes que infestam as grandes galerias da Europa, visando unicamente a recheada bolsa do incauto americano que, a cada passo, deixa escapar formidáveis exclamações que escandalizam os mais comedidos visitantes. O rompante, que muitos julgam ver em certos atos de Visconti , não existe, por ser o artista um indivíduo que vive para a sua obra, absorvido pelos motivos, pela mestra natureza; vive alheio às preocupações que aos outros causam desanimo e aborrecimentos. Eliseu Visconti, como artista que é, ama a solidão, despreza o badalar em torno da sua típica figura; vive feliz e invejado pelos seus pares, que, de vez em quando, procuram ofuscar-lhe o mérito. Taciturno, de poucas palavras, como o grande mestre de 1656, o seu desenvolvimento tem sido consequente, o seu gênio se adaptando logicamente às tendencias mais de acordo com o seu temperamento; é justamente este ponto um dos que mais o aproximam de Rembrandt, que, pouco a pouco, deixou a técnica segura, mas sem entusiasmo, para abraçar a que mais lhe parecia, preencher as condições primordiais da obra de arte. Como Velasquez, chegou a ter uma verdadeira ginástica de pincel, o que lhe valeu conseguir a solução de muitos dos seus assuntos com o caráter que o notabilizou. Rembrandt criou uma luz que é particularmente sua; Visconti criou um “tipo” que se percebe em todos os seus quadros, não o “tipo físico”, propriamente, mas um tipo de pintura que não se confunde e os faz destacar em mil. A Maternidade, o Retrato de Gonzaga Duque, o foyer do nosso Municipal (que é a melhor obra pictórica que lá existe) e nos deliciosos Nus existentes na Pinacoteca oficial, pode-se verificar esse “tipo”, apesar da disparidade do assunto e composição. Visconti representa para o Brasil o mesmo valor que Rembrandt para a Holanda, Velasquez para a Espanha, Raphael para a Itália e tantos outros, que seria longo enumerar; pois quase todas as nações Europeias possuem o seu artista encarnando condições sérias para serem colocados no mesmo nível dos gênios.

Eliseu Visconti possui condições muito especiais para, como artista, ser considerado o maior, não só do Brasil, como do mundo inteiro. Pintor de retratos, desenhador seguro; a natureza morta, ele a executa com a mesma dos nus. Na decoração, não tem quem o suplante no Brasil, é o único que encarna totalmente as condições totais para isso. Os medalhões da pintura nacional por certo não concordarão com os conceitos aqui emitidos, mas isso é coisa que absolutamente não nos dá cuidado e não fará mudar a nossa opinião, que é sincera, não obedecendo a exercícios forçados da espinha dorsal.