Personalidade – por seu filho, Tobias d’Ângelo Visconti – 1992

AUTORRETRATO - OST - 83 x 48 cm - 1914 - COLEÇÃO PARTICULAR
AUTORRETRATO

Meu pai, Eliseu Visconti, era o que se pode chamar uma forte personalidade. Homem extrovertido e expansivo, era por isto mesmo de conversa agradável, interessante e dominava facilmente os circunstantes onde quer que se achasse. Era o oposto do tímido. Tinha a critica fácil, mordaz e contundente, quer sobre as pessoas quer em relação às instituições, costumes, modas ou acontecimentos.

Possuía idéias próprias e até radicais sobre muitos assuntos e externava sua opinião com franqueza e desembaraço, e às vezes até de modo inoportuno. Este modo de ser provinha do seu temperamento extremamente sensível e emotivo, característica esta que, ao lado de uma grande força de vontade, persistência e de uma enorme capacidade e disciplina de trabalho, permitiu que se tornasse um grande artista.

Tais qualidades porém, geravam nele certo destempero de linguagem que explodia quando se sentia frontalmente contrariado ou injustiçado. Se, pelo contrário, apreciava muito uma pessoa ou um trabalho, desmanchava-se em elogios ou palavras encorajadoras.

Como é fácil compreender, tal temperamento, explosivo e extremado, valeu-lhe inimigos por um lado, e por outro lado não poucos amigos e admiradores. Por mais incrível que pareça, perduram até hoje os efeitos dessa dupla influência. Devo esclarecer que estou me referindo ao temperamento do meu pai quando se encontrava na força da idade.

Depois de 65, 70 anos, o seu modo de ser modificou-se sensivelmente: tornou-se muito mais comedido e circunspeto, e até um tanto retraído, sendo que nos últimos cinco ou seis anos de sua longa vida, interrompida de modo trágico e extemporâneo, passou a ser um homem tranqüilo, agradável e gentil, tanto com os amigos, como com os próprios desafetos. Ele soube assim evoluir, tanto na sua pessoa como na sua arte.

Eliseu Visconti foi um homem robusto, atarracado, de estatura um pouco abaixo da média. Tinha a barriga das pernas de tal modo grossas e musculosas que chamavam a atenção quando se achava de “short”. Era o resultado de milhares de horas a pintar de pé, posição que preferia, para poder recuar a vontade e observar os efeitos na tela. Dado o seu temperamento explosivo, de “pavio curto”, envolvia-se freqüentemente em discussões e bate-bocas, na rua, nas conduções ou nas repartições. São inúmeros os episódios interessantes, tragi-cômicos ou pitorescos em que se envolveu no Rio, em Paris, em Saint-Hubert ou em Teresópolis. Não me alongarei em divulgá-los. Era tido como um “original”, ou seja, como uma pessoa singular, que não acompanha as outras, e ele mesmo fazia questão de assim ser. Apesar de sua emotividade e sensibilidade a flor da pele, não lhe faltava coragem física que chegava às vezes até a temeridade. Dificilmente acreditava na possibilidade de um perigo real. Lembrarei aqui alguns episódios que revelam o seu caráter, voluntarioso ou audacioso.

Por ocasião da revolta da armada no Rio em novembro de 1910 (eu tinha então 4 meses), os revoltosos bombardearam a cidade. Minha mãe contava que, nesse dia, não houve ninguém que lhe fizesse sair do seu atelier à Av. Mem de Sá 60, o qual sendo mais alto que o prédio da vizinhança, oferecia um alvo fácil. As balas passavam, tendo algumas explodido próximo à Rua Riachuelo, aonde minha irmã ia ao colégio.

Em 1915 meu pai meteu-se num transatlântico, em demanda ao Brasil, deixando a família em Paris e levando a bordo, enrolada, a decoração do Foyer do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Essa decoração fora executada entre 1913 e 1915, no seu atelier na Rua Didot, e devia ser entregue sem falta. Naquele período da Primeira Guerra Mundial, os submarinos alemães conseguiam torpedear um navio aliado em cinco. Atravessar o Atlântico era pois um verdadeiro jogo de roleta russa. Se escapasse com vida, meu pai perderia três anos de trabalho, além das despesas.

A cidade de Paris, onde nos achávamos entre 1914 e 1918, era bombardeada freqüentemente por “Zepelins” e aviões alemães e, só descemos para o abrigo duas vezes, uma delas até com o pintor Marques Junior que nos visitava freqüentemente. Das outras vezes, meu pai se contentava em apagar as luzes, enquanto os vizinhos desciam para o subterrâneo.

AUTORRETRATO COM CHAPÉU - OST - 38,0 x 22,0 cm - c.1925 - COLEÇÃO PARTICULAR
AUTORRETRATO COM CHAPÉU

No levante do Forte de Copacabana em 1922, granadas explodiam às seis da manhã num barranco da ladeira, próximo à nossa casa, com um barulho atroador. Copacabana quase inteira fugiu, mas às três da tarde meu pai ainda se obstinava a permanecer em nossa casa à Ladeira dos Tabajaras, antiga Ladeira do Barroso. Só consentiu que saíssemos, com as malas, quando vieram avisar-nos que o último bonde ia atravessar o Túnel Velho (Alaor Prata). Depois o túnel seria fechado. Bem fizemos em fugir!. Quando voltamos três dias depois, o chão da ladeira estava todo ensangüentado: havia marcas de balas nas paredes da casa e achamos no jardim dezenas de cartuchos vazios de fuzil Mauser. O nosso jardim e a casa, que dominavam o primeiro trecho da ladeira, tinha servido de fortaleza para um grupo de soldados que travou combate com outro grupo que subia a ladeira, julgando que eram revoltosos. Houve mortos e feridos,

Certa vez, quando eu era ainda criança, vi meu pai discutir asperamente no jardim sem demonstrar receio, com um homem que manipulava um estilete próximo ao seu peito. É possível que a minha presença, como testemunha, tenha-lhe salvo a vida. No meio de maiores tempestades metia-se no jardim, com os pés dentro d’água, debaixo das árvores, com grande risco de ser atingido por um raio, “para observar o escoamento das águas”. Fez isto muitas vezes apesar das advertências alarmadas dos membros da família.

De uma feita foi tirar com a maior calma um homem fortíssimo escondido debaixo da cama da empregada. Não se incomodava muito em trancar à noite as portas e janelas da casa. Em geral era eu que me encarregava disto. Entretanto nunca possuiu ou carregou uma arma, qualquer que fosse. Do que narramos atrás não se deve concluir que não se preocupava com a família. Apenas não acreditava no perigo, julgando-se talvez protegido, com a sua família, por uma força providencial, como acontece com certas pessoas carismáticas.

Não obstante as suas explosões ocasionais e exageros verbais, meu pai era um homem correto, honesto e bom, extremamente cioso dos compromissos assumidos, que cumpria à risca. Como um dos muitos exemplos desse modo de agir, podemos mencionar a cópia que fez em tamanho natural em 1895, do quadro de Velasquez, “A Rendição de Breda” ou “As Lanças”. Como pensionista do estado só tinha a obrigação de fazer uma cópia em tamanho reduzido. Tal cópia perfeita e com as dimensões do original ficou exposta na entrada da antiga Escola Nacional de Belas Artes, à Av. Rio Branco, por mais de sessenta anos. Quando foram retirá-la, há cerda de vinte anos, o fizeram sem o devido cuidado, e a tela apodrecida partiu-se em muitos fragmentos. Até hoje tal tela, de valor inestimável, medindo cerca de três metros por quatro, não foi restaurada, o que é uma pena.

A FAMÍLIA DO ARTISTA - OST - 126,5 x 95,0 cm - c.1918 - COLEÇÃO PARTICULAR
A FAMÍLIA DO ARTISTA

Eliseu Visconti era dedicado à família e afetuoso com a esposa e os filhos. Como é sabido, retratou de preferência os membros da família. Ensinou minha mãe e minha irmã a pintar. Certa vez, no meio da noite, meu irmão Afonso que tinha então cinco ou seis anos, vomitou de repente enorme quantidade de sangue. Ficamos apavorados pensando que tinha uma grave lesão. Meu pai saiu às duas da madrugada (naquela época não tínhamos telefone nem médicos de plantão), e trouxe o Dr. Campos da Paz, de saudosa memória. Felizmente não era nada grave como supúnhamos. O menino sangrava pelo nariz e engolira todo sangue durante o sono provocando o vômito. Quando minha irmã adoeceu em conseqüência das seqüelas da gripe espanhola, que quase a matou em Paris, meu pai comprou logo uma casa em Teresópolis, o que permitiu o seu restabelecimento.

Não era por demais severo ou rígido conosco, ao contrário do que se poderia esperar de um temperamento radical como o dele. Não nos cobrava notas altas, nem classificações honrosas no colégio. Achava que se devia deixar a natureza seguir o seu curso e nunca contrariá-la. Neste ponto, minha mãe e minha irmã (a qual por ser muito mais velha do que eu e meu irmão, nos monitorava muitas vezes), eram mais exigentes e severas. Apesar disto, eu e meu irmão fomos alunos bastante aplicados e comportados tal como minha irmã também o fora. Meu pai nunca ficava doente; não me lembro tê-lo visto resfriado, com dor de cabeça ou qualquer outro incomodo. Durante cerca de sessenta anos de sua vida ficou somente uns seis dias de cama. Três por cálculos nos rins e três por uma intoxicação. Em ambos os casos tratados pelo Dr. Campos da Paz.

Eliseu Visconti dedicou-se inteiramente à sua arte sem nunca se comercializar, produzir por produzir. Pintava pesquisando, por prazer e inclinação, procurando sempre evoluir. Nisto consistia seu esforço principal. Apesar disto, não produziu tão pouco como alguns dizem. A julgar pelos quase trezentos trabalhos expostos na exposição retrospectiva de 1949, deve ter executado cerca de seiscentas telas pequenas ou médias, denominadas “pintura de cavalete”, sem contar os inúmeros desenhos e estudos, os painéis de arte decorativa, e principalmente as grandes decorações que exigiram dele enorme tempo e esforço.

Meu pai não era propriamente um intelectual pois, além das artes plásticas, não se aprofundou muito na literatura ou em outras ciências. Conhecia bem solfejo e rudimentos de música, pois antes de entrar para o Liceu como aluno de desenho e pintura teve professor de música, o qual largou para não ficar surdo, pois toda vez que errava uma nota o professor dava-lhe um tapa no ouvido. Entretanto, achava tempo para ler muito, principalmente livros e revistas sobre arte. Deixou cadernos e mais cadernos cheios de anotações sobre suas leituras, muitas vezes acompanhadas de desenhos.

Apreciava muito os artistas e filósofos alemães como Goethe, Nietzshe e certos franceses como Edouard Schuré e outros. Gostava muito da arte japonesa e chinesa, e chegou a possuir uma coleção grande de livros e gravuras em papel de arroz que, infelizmente, se perderam ou foram roubados. Lia e colecionava muitas revistas sobre arte contemporânea, alemãs, francesas e italianas.

“Não se deve contrariar a natureza” – “Deve-se deixar a natureza agir” – “O sol brilha para todos”. – eram algumas das suas máximas preferidas. A última, referindo-se às diversas escolas avançadas de pintura como expressionismo, abstracionismo, cubismo, concretismo, etc…, que respeitava, embora não as acompanhasse, numa macaqueação, que para ele não teria qualquer sentido.

MINHA CASA EM COPACABANA - OST - 35 x 52 cm - c.1920 - COLEÇÃO PARTICULAR
MINHA CASA EM COPACABANA

A nossa casa em Copacabana, à Ladeira dos Tabajaras 155 (antiga Ladeira do Barroso 29), teve sempre uma ampla sala de estar que se abria largamente para o jardim, mobiliada com móveis clássicos estilo império, que meu pai obtivera de José Mariano Filho em troca de quadros, e decorada também com os quadros da família e paisagens suas. Esta sala de mais de 70m² formava um conjunto impressionante e dela se avistava o nosso jardim, onde havia mangueiras, jaqueiras, tamarindeiros, limoeiros, abacateiros, etc. Esta casa era retangular, bela na sua singeleza, e cingida regiamente por belíssimas trepadeiras Ipomeia.

O nosso jardim vivia cheio de crianças da vizinhança que vinham brincar conosco. Era também alegrado por gatos e cachorros, que meus pais sempre tiveram. As últimas grandes borboletas azuis de Copacabana refugiaram-se em nosso jardim, onde passamos a infância, e onde meus filhos ainda brincaram bastante.

É este o resumo que consigo fazer da personalidade e do temperamento do meu pai e da sua obra de pintor, a qual não me cabe analisar em profundidade, pois não possuo títulos para tal; muitos outros já o fizeram. Trata-se de um simples esboço despretensioso que me atrevo a fazer por ter sido solicitado nesse sentido. Meu objetivo principal ao fazê-lo foi lembrar que meu pai, além de um grande pintor, foi também um pintor brasileiro em todos os sentidos.