CR1906K - Carta de Félix Bernardelli a Eliseu Visconti, enviada do México – 13 de julho de 1906

  • Tipo de Documento Correspondências - De 1901 a 1920
  • Ano 1906
  • Acervo Museu Nacional de Belas Artes - Rio de Janeiro

Pags. 2 e 3Félix Bernardelli e Eliseu Visconti parecem ter aprofundado a amizade em Paris, no período inicial da bolsa de estudos de Visconti, como mostram fotos do arquivo do artista. Numa delas os dois passeiam sozinhos por uma rua da capital francesa e noutra, aparecem juntos com um grupo de artistas brasileiros. Como as biografias do irmão mais moço dos Bernardelli indicam que ele foi para o México em 1895 e de lá não mais retornou ao Brasil, a análise desta carta mostra que os dois artistas não deixaram de se corresponder pelo menos ao longo dos 11 anos em que estiveram longe fisicamente. E o texto de Bernardelli é pródigo em demonstrações de intimidade que só se conquista após uma forte amizade. Inicia com notícias da mãe e dos filhos, comenta sobre algumas esculturas em gesso que recebeu de Visconti, confidencia que fará uma cirurgia delicada, parabeniza Visconti pelos trabalhos que executa em Paris, pede a aquisição de algumas tintas e ironiza o mau humor de Visconti.
Foi esta carta que permitiu identificar quem seria “Diana”, mulher mencionada algumas vezes na correspondência de Henrique Bernardelli e de Alberto Nepomuceno para Visconti. Diana Cid Garcia, argentina, foi uma das primeiras artistas latino-americanas expondo com regularidade nas nossas Exposições Gerais de Belas Artes. Em 1905 Diana esteve no Brasil para realizar uma exposição no Salão do Grão-Turco, no Rio de Janeiro, trazendo vários quadros. O Cristo e a Adultera, que teria sido bastante elogiado por Jean-Paul Laurens, na França, foi adquirido para a Galeria da Escola Nacional de Belas Artes e é a tela que Félix Bernardelli, nesta carta, denomina de A mulher adúltera. Diana, após casar-se com o celebrado escultor francês Jean Dampt, passou a residir em Paris, mantendo contato com Visconti, de quem foi vizinha em 1904 no número 17 da Rua Campagne Première.
Ao encerrar esta carta, Félix Bernardelli diz que se por acaso não acordar da cirurgia, como bom amigo visitará Visconti de alguma forma. Félix Bernardelli sobreviveria à cirurgia, mas falece dois anos depois de redigir esta correspondência, vítima de uma erisipela.
Abaixo, a transcrição da carta:

Mexico. DF.                                                                      Julho 13. 1906
Calle de S. Hipolito 47.

Meu querido Elyseu:

Felix Bernardelli e Eliseu Visconti em Paris – 1893

Da esquerda para a direita: Angelina Agostini (filha de Angelo Agostini, então com 5 anos de idade), D. Celestina Bernardelli (mãe dos Bernardelli), a babá de Angelina, Eduardo (filho de Angelo Agostini), Angelo Agostini, Félix Bernardelli e Eliseu Visconti. Paris 1893.

Recebi a tua carta do dia 14 de junho quando estava eu preparando-me a vir para aqui à capital por isso não pude responder-te, agora porém que já estou aqui é com muito gosto que te dou minhas notícias e da minha gente. Começando por minha Velha te direi que a pobrezinha tem a sua asma e suas hemorroidas que a tem amolado ultimamente; seus 74 anos começam a ser-lhes pesados! Ela não veio comigo por isso mesmo. Minha mulher e minhas filhinhas estão boas. As pecurruchas estão crescidas a maior já começa a ler e escreve algumas palavras. A mais pecurrucha só sabe fazer travessuras mas é muito engraçada, se tu soubesses como se quer bem a essas gentinhas poderias fazer-te uma ideia do que sinto de te-las deixado em Guadalajara. Mas vim cá consultar uns médicos e talvez tenha que fazer uma operação por isso as deixei lá. Como no caso de operar-me terei que ficar aqui um mês e meio podes dirigir a tua carta a esta direção que é casa do meu cunhado.
Agora passo a dizer-te que os gessos chegarão na maior parte bem; dos 4 gessos só um veio um pouco rachado; das estatuetas, a da Venus do Vaticano (acroupie) veio rota de um pé; alguns anjinhos também chegaram rotos mas foi coisa que eu mesmo pude remendar. Das máscaras há uma que não conheço, é um indivíduo de bigodezinho e um pouco de cavanhaque muito magro. 
Eu creio que teria sido melhor não mandar tudo em uma só caixa porque fez um volume enorme que pagas muito em estrado de ferro e há mais facilidade de quebração, eu já disse isso ao Sadaime. Pois meu velho dou-te mil remercimentos.
Pag. 4Muito gosto me dá de saber que voltastes a Paris e sobretudo com muito trabalho! Até que um dia te vou ver satisfeito, porque isto é o melhor que há: ter trabalho! Pois desejo que sejas muito feliz nas tuas concepções que é o mais difícil porque da execução já sei do que és capaz; não sei do que se trata mas faço ideia que será coisa decorativa porque agora o Rio tem muita construção nova. Aquela Avenida vai ficar digna do Boulevard des Italiens, se eu pudesse dava um pulo lá. Mas esses pulos custam muito e com família mais ainda. Por isso te felicito que possas pula daqui para ali tão livremente e com motivo tão agradável.
Peço-te que me dês muitas lembranças à Diana; Podes dizer-lhe que recebi a fotografia de seu quadro “A mulher adúltera” que lhe irei escrever um destes dias.
Com os 7 francos que dizes ter, se é que tens, a meu favor manda-me alguns pastéis a óleo de Raffaelli como se os comprares para ti mesmo calculando que sempre o branco é o que mais se gasta. Ainda que sejam poucos poderei pintar alguma coisa para satisfazer minha curiosidade.

O catálogo que me falas que traz teu quadro ainda não me chegou às mãos.
Faço ponto por hoje desejando-te boa saúde, bom humor e muita inspiração em tuas composições e até breve. Se faço a operação e me toca deixar de viver neste planeta farei o possível por vir a visitar-te como bom amigo, manifestando-me a ti do melhor modo que possa. Por conseguinte.
Sans adieu.                                Teu sincero amigo
                                                      Félix Bernardelli
Obs. Minha velha não sabe nem deve saber nada de minha operação.