Theatro Municipal – Primeiro Ato

Quem ocupa a presidência deste Theatro deve ter a exata noção do valor desse fantástico patrimônio, o pano de boca, os afrescos, enfim, todas as peças e detalhes da decoração interna, que deverão ser preservados….Visconti, para o Brasil, é o que Rafael ou Da Vinci representam para a Itália.”

Dalal Achcar


ARTHUR AZEVEDO POR MODESTO BROCOS
ARTHUR AZEVEDO POR MODESTO BROCOS

Foi Arthur Azevedo quem primeiro sonhou com a criação de uma companhia teatral subvencionada pela Prefeitura Municipal do Distrito Federal. Tinha o escritor e teatrólogo a convicção de que somente a construção desse teatro poderia interromper a má fase em que se encontravam as artes cênicas naquela segunda metade do século XIX. Na concepção do autor, o novo teatro deveria ser gerido pelo poder público, funcionando para o povo, e principalmente incentivando a apresentação de companhias de teatro nacionais. A insistência de Arthur Azevedo, principalmente através de seus artigos na imprensa, resultou na criação, em 1894, de lei que previa a construção de um teatro municipal.

Mas seria somente em 1903 que a Comissão Construtora da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco) e o Prefeito do então Distrito Federal, Francisco Pereira Passos, definiriam o local da construção do Theatro Municipal e abririam concurso para sua construção. A majestosa edificação faria parte de um programa de grandes obras realizadas no Rio de Janeiro, entre 1902 e 1906, durante o mandato do Prefeito, com o objetivo de modernizar a capital da República, através da adoção dos padrões urbanísticos e arquitetônicos das principais capitais da Europa, sobretudo Paris e Londres. O Theatro Municipal seria um símbolo da modernidade importada de Paris, ideal de cidade desde a reforma empreendida na capital francesa pelo Barão Eugéne Haussmann.

As sete propostas de projeto para a construção do teatro foram apresentadas em março de 1904, tendo o resultado da concorrência sido divulgado em setembro do mesmo ano. A comissão concedeu o primeiro e o segundo prêmios aos projetos Áquila, apresentado pelo Engº Francisco Oliveira Passos, e Isadora, apresentado pelo Engº Albert Guilbert, presidente da Sociedade dos Arquitetos Franceses.

Acusações de favorecimento surgiram na imprensa e na Câmara Municipal, que reagiram à concessão do primeiro lugar ao projeto do filho do Prefeito Pereira Passos. A veemência do jornalista Enéas Sá Freire destacou-se no Jornal do Commercio:

“…não podemos ser respeitados quando a maior autoridade local do Distrito convida, em um certame universal, filhos de nações estrangeiras para concorrerem, sabendo de antemão que já estava o primeiro prêmio destinado a seu próprio filho.”

As críticas seriam amenizadas com a fusão das duas propostas mais bem colocadas para concepção do projeto definitivo, solução conciliatória adotada graças à compatibilidade entre os dois projetos.

No dia 2 de janeiro de 1905, foram iniciadas as obras de construção do Theatro, que seria palco dos mais importantes espetáculos de arte no Brasil e um marco na vida cultural da cidade do Rio de Janeiro.

RETRATO DO PREFEITO PEREIRA PASSOS - OST - 68 x 98 cm - c.1911 - PALÁCIO DA CIDADE-RJ
RETRATO DO PREFEITO PEREIRA PASSOS – c.1911

Alguns meses depois, Eliseu Visconti encontrava-se em Paris, quando recebe o convite para executar as decorações do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. O prefeito não o conhecia pessoalmente, mas já apreciava seus trabalhos, tendo pesado a favor de Visconti o fato de estar em Paris, acompanhando as inovações artísticas. A escolha do jovem artista para tão importante tarefa receberia críticas dos admiradores de artistas mais consagrados à época. Foi sugerido um concurso, justo pleito, mas sob a alegação de que as decorações deveriam ser entregues a um brasileiro, numa alusão maldosa à origem italiana de Visconti.

Mas a decisão estava tomada e o convite formal viria por carta do amigo comum Francisco Guimarães. O missivista seria Francisco da Silva Mendes Guimarães, cunhado do senador Joaquim Murtinho e padrasto de Laurinda Santos Lobo. Laurinda, sobrinha do senador, se tornaria uma das maiores mecenas das artes na cidade do Rio de Janeiro, no início do século XX, recebendo intelectuais e artistas nas dependências do seu antigo palacete, no bairro de Santa Teresa, na cidade do Rio de Janeiro . Na ocasião, Francisco Guimarães participava do longo projeto para construção de uma Paris no Rio de Janeiro, iniciado por Pereira Passos. [1]

Rio, 16 de junho de 1905

Meu caro amigo e Sr. Visconti,
Sei por seu irmão que goza de excelente saúde, e, pelos jornais, que tem expostos dois belos retratos no Salon. Desejo-lhe mil venturas.
O Engº Francisco de Oliveira Passos, autor do projeto e construtor do Theatro Municipal, encarregou-me de escrever-lhe pedindo o seu auxílio na execução dessa obra que ele deseja que seja digna da bela capital que será o Rio de Janeiro. O teatro está se fazendo e cresce a olhos vistos, e vai ser um primor. O Passos diz e, com razão: a idéia principal é minha, mas quero que os artistas brasileiros dignos desse nome, liguem os seus nomes à obra. Perguntando-me quais eram na minha opinião os artistas capazes de decorar o Teatro, eu disse em presença de várias pessoas conhecidas, e mais tarde em minha casa: – Só conheço dois: o Visconti, em primeiro lugar, e o Henrique Bernardelli em segundo. – Mas o Visconti está longe. – Tanto melhor, está em Paris, refrescando e consolidando as idéias, vivendo enfim. Ninguém como ele trará melhores projetos. – Pois você está autorizado a escrever ao Visconti dizendo-lhe que venha e que traga já algumas idéias, porque eu vou incumbi-lo de decorações importantes para o Theatro.
Já comuniquei esta minha iniciativa ao seu irmão Ângelo, e hoje ao nosso amigo Vieitas, que ficou contentíssimo.
Está cumprida a minha missão e espero que será coroado de êxito, para bem da arte brasileira, da qual é o amigo ornamento brilhante. (…).
Que notícias me dá do meu vaso que foi para São Luiz?
Adeus. Até breve.
Disponha do (…) admirador e amigo,
Francisco Guimarães. Quitanda 85.

Mais tarde, em carta dirigida a Francisco de Oliveira Passos, Visconti responderia:

Paris, 04-10-1905

…Os projetos do Theatro me encheram de entusiasmo pelo valor real do edifício em si próprio. Não oculto o meu contentamento, o dizer-me que tomará na devida consideração a minha contribuição artística.
Sempre embalei um sonho: o de um dia realizar um conjunto de arte, em um edifício importante. Terei chegado a tempo? V. S. me diz que sim.
O Foyer, os Torreões laterais, a Clarabóia da grande escada e os Corredores que dão acesso ao Foyer, me parecem dignos de um conjunto artístico. Quanto ao Pano de Boca, achei o tema interessante, vou desenvolvê-lo… .

O pintor tinha consciência do seu papel e da grande responsabilidade que lhe cabia, de tal modo que, na resposta ao Engº Francisco de Oliveira Passos, Visconti visualiza nos projetos do Teatro muitas possibilidades, dentre as quais a pintura do foyer, a qual executaria somente oito anos depois.[2]

No início de 1906, Visconti vem ao Brasil submeter à aprovação do Prefeito Pereira Passos os primeiros estudos para as decorações do Theatro Municipal. Os trabalhos referiam-se a todas as decorações da sala de espetáculos, ou seja, o pano de boca, o plafond (teto sobre a platéia) e o friso sobre o proscênio (decoração acima da boca de cena), além de dois triângulos menores no teto, próximo ao palco. O croqui do pano de boca é exposto ao público na Casa Vieitas.

Após a aprovação dos estudos e antes de voltar a Paris, Visconti assina o contrato com a Comissão Construtora do Theatro Municipal. Uma das cláusulas obrigaria Visconti a hipotecar um imóvel de seu irmão, Afonso Visconti, situado à Rua Visconde de Itaúna nº 2, no Rio de Janeiro. O não cumprimento dos prazos ou a desistência da encomenda por parte do pintor resultaria na execução da hipoteca. Outra cláusula estabelecia a data de 31 de maio de 1907 como prazo máximo para entrega do plafond, do friso e dos triângulos do teto. Ao pano de boca concedeu-se um prazo maior, devendo ser entregue até 10 de setembro daquele mesmo ano.

Eliseu Visconti não foi o único pintor convidado para decorar o Theatro. Outros notáveis artistas, Rodolpho Amoedo e Henrique Bernardelli, contribuíram com seu talento para a beleza do nosso maior teatro. Rodolpho Amoedo executou, em 1916, oito pinturas nas rotundas externas do prédio, reproduzindo cenas de dança de diversos países. Já Henrique Bernardelli, executou, em 1908, as pinturas dos tetos das duas rotundas do foyer, representando apoteoses à música e à poesia. Mas certamente “é Visconti a estrela mais brilhante na constelação de pintores que enriqueceram com suas obras o interior do Theatro Municipal”.[3] O próprio artista, em documento encaminhado em 1938 a Oswaldo Teixeira, Diretor do MNBA á época, definiu as decorações do Theatro Municipal como sua mais importante obra.

OLAVO BILAC
OLAVO BILAC

O Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi inaugurado em 14 de julho de 1909 com um discurso do poeta Olavo Bilac, entregando à cidade “o seu mais belo edifício, com um esplendor de mármore e bronzes”. E o poeta refere-se ao Theatro como a coroa da rainha amada, a cidade do Rio de Janeiro:

“O teatro é ainda hoje o salão nobre da cidade, o seu fórum social, a arena elegante em que se travam os torneios da moda, da graça, da conversação e da cortesia. É por isto que, a fim de enriquecê-lo de encantos, todas as artes se aliam e [se] esforçam. (…) para ataviá-lo congregam-se a engenharia, a arquitetura, a pintura, a escultura, a marcenaria, a cerâmica, a indumentária. É que dentro dele reside toda a vida civilizada; tudo quanto ela tem de sério e de amável, de forte e de meigo, de deslumbrante e de encantador, se resume e se condensa dentro dele: no palco impera o pensamento, na sala impera a beleza… Faltava-te este palácio, cidade amada! No teu renascimento esplêndido, faltava esta afirmação do teu gênio artístico! E eu abençôo (…) tua coroa de rainha!”

Além do discurso do poeta, a elite da capital brasileira pôde assistir à apresentação de duas óperas nacionais -“Moema”, de Delgado de Carvalho, e “Insônia”, de Francisco Braga – além da comédia “Bonança”, de Coelho Neto.

Assistiram à cerimônia em camarotes opostos o presidente da República, Nilo Peçanha, e o prefeito do então Distrito Federal, Souza Aguiar. Não presenciou a noite de inauguração o dramaturgo Arthur Azevedo, que sustentou a campanha vitoriosa para a construção do Theatro. O teatrólogo falecera nove meses antes. Notada também a ausência do Prefeito Pereira Passos, cuja administração promoveu a grande reforma urbanística na cidade e iniciou a construção do Theatro. O ex-prefeito viajava pela Europa, talvez para não ofuscar o brilho de seu filho.

MORINGA DECORADA COM PERFIL E FLORES - EXECUTADA PARA A INAUGURAÇÃO DO THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO - CERÂMICA PINTADA - h. 28 cm - Ø 18 cm - 1909 - COLEÇÃO PARTICULAR
Moringa executada para a inauguração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

Para essa noite de gala, Eliseu Visconti, presente em todas as pinturas da sala de espetáculos (pano de boca, friso sobre o proscênio, triângulos do teto e plafond), projetou uma série de moringas em estilo art-nouveau, colocadas nas frisas e nos camarotes do Theatro. Ao término da cerimônia de inauguração as peças desapareceram, não se sabendo ao certo o número de moringas produzidas originalmente. Conta a história que os ocupantes das frisas e dos camarotes as levaram como brinde.

Clique aqui para assistir vídeo com as obras de Eliseu Visconti no Theatro.

 

NOTAS:

[1] MACHADO, Hilda – Laurinda Santos Lobo:  Mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa – Casa da Palavra, 2002.

[2] OLIVEIRA, Valéria Ochoa. A arte na belle époque – O simbolismo de Eliseu Visconti e as musas – Editora da Universidade Federal de Uberlândia – 2008.

[3] XEXÉO, Pedro – Theatro Municipal – 90 anos – Museu Nacional de Belas Artes – 1999, p. 36.

 

 

 

Obras de Eliseu Visconti no Theatro Municipal
Vídeo apresentando as obras de Eliseu Visconti no Theatro Municipal
Engenheiro Francisco Oliveira Passos
Engenheiro Francisco Oliveira Passos
Largo da Mãe do Bispo - Local onde seria erguido o Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Largo da Mãe do Bispo
Theatro Municipal - Início das Obras
Theatro Municipal – Início das Obras
Theatro Municipal em Obras
Theatro Municipal em Obras
Construção da Avenida Central (atual Av. Rio Branco)
Construção da Avenida Central
Avenida Central, o Convento D'Ajuda e os barracões das obras do Theatro Municipal - c. 1905
Avenida Central, o Convento D’Ajuda e os barracões das obras do Theatro Municipal – c. 1905
Theatro Municipal em obras - 1905
Theatro Municipal em obras – 1905
Theatro Municipal do Rio de Janeiro em obras
Theatro Municipal do Rio de Janeiro em obras
Inauguração do Theatro Municipal - 1909
Inauguração do Theatro Municipal – 1909
Theatro Municipal recém inaugurado
Theatro Municipal recém inaugurado
Sala de espetáculos integralmente decorada por Visconti
Sala de espetáculos integralmente decorada por Visconti
Theatro Municipal do Rio de Janeiro - Foto do início do século XX
Theatro Municipal do Rio de Janeiro – Foto do início do século XX
Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Theatro Municipal do Rio de Janeiro