1893-1900 – Aperfeiçoamento (Europa)

Era a primeira vez que o artista Visconti vislumbrava a paisagem europeia, com olhos já treinados para imaginar efeitos de cores, recortes e ângulos arranjados de forma original. De imediato, ele começou a registrar suas primeiras impressões: em madeira de caixa de charutos, fixou sua visão da Torre de Belém, de Lisboa, por onde teria acesso a Paris, a cidade indicada por seus professores para seu estágio de aperfeiçoamento.

Ao lado dos sonhos que certamente o jovem Eliseu, aos 27 anos, trazia em sua bagagem, estava a determinação de não frustrar as expectativas daqueles que lhe proporcionaram a oportunidade de estar ali, seus antigos professores. O primeiro passo que seria dele esperado: a admissão na École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts. E o itinerário mais comum e eficaz para essa conquista era através das academias independentes do ensino oficial, dentre as quais a Julian era a mais famosa. No seu certificado de admissão à École [1], o pintor brasileiro é apresentado como aluno de Bouguereau e Ferrier, e podemos vê-lo entre outros colegas nos dois ateliers masculinos da Académie Julian, em fotos de 1893.

NU MASCULINO - CARVÃO S/ PAPEL - 62,0 x 47,6 cm - 1893 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
NU MASCULINO – 1893 – MNBA

Classificado em 7º lugar, ao final das provas de admissão à École, Visconti gozava de uma situação privilegiada na hierarquia dos alunos, e nas aulas ocupava um dos lugares mais próximos ao modelo. Esta posição acentua o ângulo de visão de baixo para cima, o que ficou registrado nas quatro academias desenhadas do acervo do MNBA. No entanto, o nome dele aparece nas listas de presença, somente de outubro de 1893 a janeiro de 1894. Tendo provado à comunidade artística brasileira que era capaz de ser admitido no ensino oficial francês, e com brilhantismo, não tinha porque se desgastar naquele ambiente extremamente competitivo e desagradável, dos concursos de emulação propostos pela École. Afinal, Visconti já gozava do seu prêmio de viagem e, para cumprir com suas obrigações como bolsista, a Académie Julian lhe servia perfeitamente.

Além de ser o período da primeira estada de Visconti em Paris, este é também o de suas primeiras conquistas de medalhas internacionais. Entre maio e outubro de 1893, ele participa da World’s Columbian Exposition, em Chicago, EUA, e recebe uma medalha pelas oito paisagens a óleo exibidas, as quais haviam sido criadas ainda no Brasil.

Visconti continuou praticando na Julian, onde mantinha contato com os mesmos professores da École, por quase todo o seu tempo de pensionista do Estado Brasileiro e ali produziu a maioria de suas academias que hoje conhecemos: tanto aquelas que foram enviadas aos seus professores como obrigação do primeiro e segundo anos de estágio, e podem ser vistas no Museu Dom João VI e no MNBA, como aquelas que se encontram em coleções particulares. É interessante observar que Visconti registrava ainda, no fundo das academias, vários elementos comuns às aulas de modelo vivo: banquinhos, cavaletes, telas, seus colegas de atelier e até outros modelos além daquele ao qual ele se dedicava.

O prestígio do reconhecimento oficial, Visconti podia continuar obtendo, e com vantagens, através de outro instrumento: o Salon. Justamente no momento em que deixa a École, o pintor brasileiro se preparava para enfrentar o temido júri do Salon de la Société des artistes français pela primeira vez, com as obras A Leitura e No Verão. Esta última acabou sendo denominada no MNBA, Menina com ventarola, título que ressalta o motivo inspirado nas gravuras japonesas que Visconti colecionava. Ele exporia ainda no Champs-Elysées mais duas vezes: Comungantes e Retrato do Maestro Alberto Nepomuceno, em 1895, e no ano seguinte, A Convalescente e Nu deitado.

AS DUAS IRMÃS ou NO VERÃO - OST - 58,9 x 80,4 cm - 1894 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
AS DUAS IRMÃS ou NO VERÃO – 1894

Nota-se que o pintor brasileiro procurava experimentar cada um dos temas em voga na Paris do fin de siècle. Porém, o fazia sempre respeitando sua individualidade e aproveitando estrategicamente suas habilidades artísticas. Assim, criou duas cenas cheias de doçura: Comungantes inspirada no pré-rafaelismo, e da vertente mais branda do decadentismo, A Convalescente. No ano anterior, abordou com sutileza admirável o tema do homoerotismo feminino, alterando, com ousadia, alguns importantes detalhes, comuns às composições deste tipo que frequentavam os salões: suas protagonistas têm mais tenra idade e a cena está ambientada num interior, sobre uma cama, anulando assim os álibis culturais geralmente usados para os nus femininos. Apesar disso, As duas irmãs (1894), hoje registrada no MNBA como No verão, foi sempre aceita com naturalidade, e admirada a felicidade da postura e expressão das duas meninas.

Visconti ensaiou também uma composição da História literária, pois devia enviar no quarto ano de estágio, como parte de suas obrigações de pensionista, o esboço para a execução de um grande quadro, uma cena da Divina Comédia, de Dante Alighieri. De acordo com suas inclinações, Visconti escolheu como tema A saída da vida pecaminosa. Ele realizou ainda, pelo menos mais três esboços da mesma cena, além daquele encaminhado aos seus professores da ENBA, em maio de 1896, juntamente com o orçamento da verba para a execução do quadro que, apesar de aprovada, nunca foi enviada.

Percebe-se que o pintor deu preferência ao envio deste trabalho, deixando para depois a conclusão da sua obrigação para o terceiro ano – uma cópia de Velásquez. Isso porque Visconti era mesmo perfeccionista. Ele já havia estado no Museu do Prado, em 1895, mas, como preparação para a cópia de Rendição de Breda, escolhida pelos seus professores, fez primeiramente cópias de detalhes de outros quadros de Velásquez: Las niñas, Infante Carlos, Marianna d’Áustria. Assim, somente em julho de 1896 ele retorna à Espanha para terminar sua cópia de Las lanzas, que será reproduzida na primeira edição da Revue du Brésil (1° nov.), cuja capa foi também uma criação de Visconti.

Deixando as aulas diárias da École des Beaux-Arts, Visconti dispõe de tempo para frequentar a École Guérin, que lhe permitia, agora sim, satisfazer suas próprias expectativas de aprendizado, com mais liberdade e autonomia. Ali Visconti frequentou, até 1898, o curso de Artes Decorativas de Eugène Grasset, “um dos mais reconhecidos mestres de artes gráficas de sua época e importante precursor do art nouveau, tendo sido um dos primeiros artistas na França a se alinhar com as propostas de William Morris”[2]. Durante este curso, Visconti criou projetos para cerâmica, vitral, marchetaria, entalhe de madeira, estamparia de tecido, luminária, selo, etc.

SONHO MÍSTICO - OST - 101 x 81 cm - 1897 - MUSEU DE BELAS ARTES DE SANTIAGO DO CHILE
SONHO MÍSTICO – 1897

A partir de 1897, Visconti passa a expor suas obras no Salon de la Société nationale des beaux-arts, por três anos consecutivos. No primeiro ano, foram expostos dois nus que confirmavam sua sensibilidade e aptidão para tratar um gênero tão corriqueiro naqueles tempos: Fatigada e Sonho místico, este último, que apresenta um magistral escorço da coxa, revela no seu título e no detalhe dos lírios, sua inspiração simbolista.

Todas essas obras expostas em Paris foram depois enviadas pelo bolsista para figurarem nas primeiras Exposições Gerais de Belas Artes (EGBA) organizadas pela ENBA, ao lado de outras mais despretensiosas, especificamente nos anos de 1894, 1896 e 1898. Essas exibições já foram suficientes para registrar um novo patamar de reconhecimento por parte da crítica carioca, pelo que vale destacar alguns trechos das crônicas publicadas nos jornais:

O nome de Elizeu Visconti, que ha poucos annos se tornou conhecido como o de um estudante de talento, que trabalhava e promettia muito, é hoje o de um pintor notavel, que desenha perfeitamente, pinta com independencia e sympathia e trabalha a sério.[3]

O Sr. Visconti é hoje em dia um pintor feito, com uma technica segura e que só falta firmar a sua individualidade para se tornar um artista incontestado. Tem preferencia para pintar o nú, deliciando-se nos effeitos de colorido que este genero proporciona […]

As suas pochades são verdadeiras notas impressionistas, effeitos de côr e de luz que o artista procurou registrar, alguns de realidade exacta, outros talvez de harmonia quasi fantastica, em procura de effeitos decorativos, a nota caracteristica de algum momento caprichoso da natureza.[4]

As pochades mencionadas são pequenas paisagens do Jardim do Luxemburgo ou recantos captados em suas viagens pela Europa. Aquela considerada de harmonia fantástica, citada em outro trecho, pelo primeiro autor, como “fantasia graciosa”, é Patinhos no lago (1897), e merece destaque, também, Primavera (1895), ambas criadas enquanto ainda estava aquecido o debate provocado pelo legado Caillebotte.

RECOMPENSA DE SÃO SEBASTIÃO - OST - 218,8 x 133,9 cm - 1898 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
RECOMPENSA DE SÃO SEBASTIÃO – 1898

Para o Salon du Champ de Mars de 1898, Visconti experimenta um tema da História religiosa, ainda com influxo simbolista, homenageando o padroeiro da cidade do Rio de Janeiro. Apesar de representar a cena do martírio, mais uma vez Visconti é fiel ao seu temperamento – afastando a dor e a angústia do momento, ressalta a Recompensa de São Sebastião, na qual a figura alegórica tem mais presença que o santo. No ano seguinte, Visconti expõe, junto com O beijo, aquela que se tornará sua obra mais famosa, chamada “a Gioconda brasileira”, desde Hugo Auler, em 1967, até Rafael Cardoso, em 2008 – Gioventù.

Mesmo estando ainda em Paris, Visconti participou do concurso lançado pela Associação do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1899, para o esboço de uma grande composição com o tema do descobrimento. Apesar de Visconti não ter sido o vencedor, o pseudônimo usado por ele no concurso – Providência – acabou incluído no título de uma pintura de grande formato com esse tema. É conhecido também seu esboço, com a mesma data 1899, porém, como suas dimensões são ainda maiores que as estipuladas pelo concurso, talvez este seja um segundo estudo preparatório para A Providência guia Cabral.

Antes de voltar ao Brasil, Visconti participa ainda da Exposition Internationale Universelle de 1900, em Paris, que lhe rende uma Menção honrosa na seção de Arte Decorativa e Artes Aplicadas, e uma Medalha de Prata pelas pinturas Gioventù e Oréadas (1899). Esta última seria uma bem sucedida, mas isolada, criação viscontiana inspirada na História mitológica (com exceção das decorações do Teatro Municipal), ainda bem ao gosto dos pré-rafaelitas. Ao contrário, às futuras criações de Visconti da História recente, ele sempre acrescentará uma figura alegórica feminina, alada ou não, transformando, assim, A Providência guia Cabral numa espécie de protótipo.

[1] Datado de 10 de julho de 1893. Acervo Arquivístico do MDJVI, notação 6051.

[2] Rafael Cardoso. Dois ramos do mesmo tronco – Arte e Design na obra de Eliseu Visconti. In: Eliseu Visconti: Arte e Design. Rio de Janeiro: Hólos Consultores, 2007, p. 21.

[3] Silvano. Exposição Geral de Bellas-Artes. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 28 set 1898, p. 2.

[4] Jornal do Commercio (Notas sobre Arte). Rio de Janeiro, 13 set 1898, p. 2.

TORRE DE BELÉM - OSM - 12 x 21 cm - 1893 - COLEÇÃO PARTICULAR
TORRE DE BELÉM – 1893
A LEITURA - OST - 38,0 x 47,0 cm - 1893 - COLEÇÃO PARTICULAR
A LEITURA – 1893
COMUNGANTES - OST - d:90,5 cm - 1895 - COLEÇÃO PARTICULAR
COMUNGANTES – 1895
RETRATO DO MAESTRO ALBERTO NEPOMUCENO - OST - 59 x 81 cm - 1895 - INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO
RETRATO DO MAESTRO ALBERTO NEPOMUCENO – 1895
A CONVALESCENTE - OST - 90 x 58 cm - c.1896 - COLEÇÃO PARTICULAR
A CONVALESCENTE – c.1896
CAPA DO PRIMEIRO NÚMERO DA REVUE DU BRÉSIL EDITADA EM PARIS - NOVEMBRO DE 1896 - 37 x 29 cm - MATRIZ ORIGINAL DE LOCALIZAÇÃO DESCONHECIDA
CAPA “REVUE DU BRÉSIL”, PARIS – nov. 1896
PATINHOS NO LAGO - OST - 60 x 81 cm - 1897 - COLEÇÃO PARTICULAR
PATINHOS NO LAGO – 1897
PRIMAVERA - OST - 60 x 45 cm - 1895 - COLEÇÃO PARTICULAR
PRIMAVERA – 1895
O BEIJO - OST- 24,0 x 32,5 cm - 1898 - COLEÇÃO PARTICULAR
O BEIJO – 1898
GIOVENTÙ - OST - 1898 - 65 x 49 cm - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ - GIOVENTU - MEDALHA DE PRATA NA EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS EM 1900
GIOVENTÙ – 1898
A PROVIDÊNCIA GUIA CABRAL - OST - 180 x 108 cm - 1899 - PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
A PROVIDÊNCIA GUIA CABRAL – 1899