Visconti Designer – Introdução

BAS DE PORTIÈRE/IRIS SELVAGENS - ESTUDO PARA TECIDO - GUACHE/PAPEL - 61 x 47 cm - c.1896 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
BAS DE PORTIÈRE/IRIS SELVAGENS – ESTUDO PARA TECIDO – c.1896

Em tempos recentes, há consenso em se afirmar que Eliseu Visconti foi um dos primeiros designers brasileiros, denominação profissional incompatível com a época em que viveu. Embora essa afirmação deva ser matizada à luz de sua atuação como artista, não é possível ignorar que seu trabalho associado às artes decorativas guarda semelhanças com iniciativas semelhantes no contexto europeu, que também fizeram uso do art nouveau para construir uma ponte entre as artes plásticas e o projeto de objetos utilitários e peças gráficas fabricadas em série.

Seja chamado de art nouveau (França e Bélgica), Jugendstil (Alemanha e Áustria), estilo floreale (Itália) ou modernismo (Espanha e Portugal), o estilo mantém-se fiel a um vocabulário visual comum, mais facilmente identificável em suas manifestações gráficas, e que tem no entrelaçamento de linhas ondulantes e sinuosas de inspiração floral sua característica mais evidente. Foi o primeiro estilo na história do design a ganhar o status de uma linguagem “mundial”.

Sua força reside no fato de que, embora tenha assumido traços específicos condizentes com o contexto cultural de cada país em que se manifestou, sua linguagem básica permanece inalterada, como a determinar um fio condutor para artistas, arquitetos e designers de diversas nacionalidades.

Também são elementos preponderantes no campo das artes gráficas a composição assimétrica, a inspiração na figura feminina e o emprego de uma paleta de cores em que predominavam suaves tons pastel.

O grande mérito do art nouveau no processo evolutivo do design teria sido o seu rompimento com as tendências historicistas que dominavam o design industrial, com destaque para o design praticado na Inglaterra vitoriana, berço da Revolução Industrial.

Essa visão revolucionária se faz acompanhar de uma práxis, especialmente no campo do projeto de arquitetura, igualmente inovadora: a busca pelo conceito de “obra de arte total”, claramente perceptível nos projetos de arquitetos como Hector Guimard e Victor Horta e resgatado pela própria Bauhaus em seu manifesto de fundação.[1]

Curiosamente a linguagem formal do art nouveau havia sido inicialmente posta em prática pelo pioneiro designer britânico Christopher Dresser, cerca de uma década antes do estilo ser popularizado na França e na Bélgica.

As linhas lânguidas e a temática floral foram exploradas de forma magistral por esse botânico inglês, considerado pela historiografia do design britânico como “o primeiro designer industrial da história”.[2]

ÁRVORES/ETOFFE IMPRIMÉE - ESTUDO PARA TECIDO - GUACHE/PAPEL - 48 x 37 cm - 1897 - COLEÇÃO PARTICULAR
ÁRVORES/ETOFFE IMPRIMÉE – ESTUDO PARA TECIDO – 1897

Dresser, tal como Visconti, atuou em vários campos, como o design de mobiliário, a cerâmica e o vidro, cujos projetos já configuravam um proto art nouveau, antecipando em cerca de uma década a linguagem adotada pelos designers da virada do século.

Embora a linguagem excessivamente rebuscada do art nouveau tenha, na maioria dos casos, inviabilizado sua transposição para o produto industrial massificado, ainda assim o estilo atuou como elo entre as tendências vitorianas e o design industrial modernista do início do século XX.

Aqui mais uma vez se pode estabelecer um paralelo entre Eliseu Visconti e o arquiteto alemão Peter Behrens, a quem a historiografia do design também atribui o papel de “o primeiro designer industrial moderno”.

Peter Behrens originalmente encarnava a perfeita representação do típico arquiteto art nouveau. Sua prática profissional integrava a criação de móveis e utensílios utilitários aos projetos arquitetônicos, e, tal qual Eliseu Visconti, aconteceu em paralelo com seu trabalho como artista plástico.

Sua xilogravura O Beijo[3] é uma típica manifestação do Jugendstil germânico, e o tratamento gráfico essencialmente bidimensional e sóbrio contrasta com o estilo mais vibrante e dotado de nuances cromáticas e de volume, presentes, por exemplo, na obra do pintor e artista gráfico Alphonse Mucha.[4]

Mucha, por sua vez, teve sua obra influenciada por Eugène Grasset, talvez o mais importante pioneiro do art nouveau e elo entre Eliseu Visconti e o design brasileiro.

Grasset exercitou as múltiplas possibilidades de atuação do novo modelo de “artista industrial”, fruto das transformações surgidas como consequência do rápido processo de industrialização da Europa ocidental. Pintor por formação, foi capaz de perceber as novas oportunidades de atuação profissional oferecidas aos artistas na era industrial.

CAVALOS - ESTUDO PARA DECORAÇÃO DE PISO OU ESTAMPARIA DE TECIDO - CARVÃO E GIZ S/ PAPEL - 54 x 41 cm - c.1900 - COLEÇÃO PARTICULAR
CAVALOS – ESTUDO PARA DECORAÇÃO DE PISO OU ESTAMPARIA DE TECIDO – c.1900

Tal como ocorrera com Christopher Dresser na Inglaterra, Grasset criou com igual desenvoltura projetos de móveis; luminárias e portões de ferro forjado; uma caixa registradora ornamentada com motivos florais; vitrais; joias e tapeçarias.

No campo gráfico, suas contribuições são igualmente importantes, e incluem o design tipográfico, a criação de selos postais e a ilustração comercial, mas é no seu pioneirismo (juntamente com Jules Chéret) na criação do moderno cartaz comercial que reside sua grande contribuição ao design gráfico.[5]

Grasset também desempenhou um importante papel acadêmico, pois esteve à frente do ensino do “desenho para as artes industriais” e da “composição decorativa” na École Guérin,[6] no período compreendido entre 1890 e 1903, e foi nesta instituição que Eliseu Visconti travou conhecimento com a linguagem e o espírito do art nouveau.

Ao vencer o primeiro concurso realizado pela Escola Nacional de Belas Artes em 1892, Visconti obteve o Prêmio de Viagem à Europa e pôde assim estudar na École Guérin sob a orientação de Eugène Grasset.

Visconti chegou à França no momento em que o art nouveau surgia como vanguarda artística. O estilo alcançaria o ápice de sua popularidade e vitalidade por volta de 1900, quando de seu retorno ao Brasil.

O BEIJO DA GLÓRIA A SANTOS DUMONT - CARTAZ - LITOGRAFIA MONOCROMÁTICA COM OURO - 69,5 x 50,0 cm - 1901 - COLEÇÃO PARTICULAR
O BEIJO DA GLÓRIA A SANTOS DUMONT – 1901

A Paris que Visconti conheceu era o palco de intensas transformações no campo das artes decorativas e do design gráfico, tendo como catalisador a linguagem do art nouveau. Suas ruas encontravam-se cobertas por um novo veículo de comunicação, o cartaz comercial litográfico. Seu aparecimento coincide com o advento da publicidade de massa. Seu principal e pioneiro expoente foi Jules Chéret, um aprendiz de litógrafo que iniciou sua carreira de artista comercial por volta de 1858. Nos cartazes de Chéret, percebia-se a ênfase nos elementos pictóricos, com destaque para a presença de figuras femininas de pele pálida, cujos sorrisos e sensualidade serviam ao propósito de vender entradas para espetáculos e produtos de todo o tipo, estabelecendo desde então uma das estratégias mais populares e eficientes da publicidade: o uso de sensuais figuras femininas como chamariz de vendas. Coube ao público parisiense batizar essa nova categoria de musas inspiradoras de “Chérettes”.

Eliseu Visconti também testemunhou a bem-sucedida parceria entre Alphonse Mucha e sua musa inspiradora, Sarah Bernardt, expressa pela sequência de cartazes desenhadas pelo artista para seus espetáculos: A Dama das Camélias (1896), Lorenzaccio (1896), A Samaritana (1897), Medeia (1898), Hamlet (1899) e, finalmente, Tosca (1899).

Se Chéret havia concebido o conceito de cartaz comercial, Mucha levou a ideia à maturidade e criou a definitiva expressão do art nouveau gráfico. Sua obra, inteiramente baseada na linguagem floral e povoada por versões extremamente sensuais e provocantes das “Cheréttes”, incluiu inúmeros cartazes e calendários, avançando em direção ao moderno design gráfico corporativo ao projetar embalagens para os biscoitos Lefévre-Utile (1900).

ARTE BRASILEIRA - ESTUDO PARA LOGOMARCA - NANQUIM/PAPEL - 30 x 40 cm - c.1902 - COLEÇÃO PARTICULAR
ARTE BRASILEIRA – ESTUDO PARA LOGOMARCA – c.1902

A arquitetura de Paris também proporcionou a Visconti um vislumbre das novas possibilidades de atuação e intervenção do trabalho artístico no cotidiano do cidadão comum. O projeto arquitetônico era o laboratório ideal em que arquitetos e designers realizavam experiências no âmbito da integração entre arquitetura, decoração e design de objetos utilitários – como mobiliário, luminárias e talheres –, buscando alcançar o ideal de “obra de arte total” e unidade visual.

O projeto das entradas das estações do Metrô de Paris, realizado pelo arquiteto Hector Guimard entre 1899 e 1904, foi o exemplo perfeito do potencial de integração entre as três atividades e pode ser considerado uma das primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como design de mobiliário urbano.

Guimard explorou as possibilidades técnicas e estéticas da utilização do ferro fundido como elemento estrutural e, ao mesmo tempo, decorativo nas grades e pórticos que davam acesso às estações. Luminárias de design completamente orgânico estavam posicionadas de ambos os lados do pórtico de entrada, e suas formas sugerem um organismo vivo.

Um ano após o seu retorno da Europa, Visconti realiza na Escola Nacional de Belas Artes uma exposição de extrema importância para a história do design brasileiro. Ela mostrava exemplos de arte decorativa e artes aplicadas à indústria. Para Frederico de Morais, essa foi a “primeira mostra individual de desenho industrial no Brasil”,[7] incluindo projetos para objetos em ferro, cerâmicas, trabalhos de marquetaria, esmalte cloisonné, vitrais, estamparia de tecidos, papel de parede e couro cinzelado.

A LEI ÁUREA - PROJETO PARA SELO INTEGRANTE DA COLEÇÃO VENCEDORA DO CONCURSO DOS CORREIOS DE 1904 - NANQUIM E GUACHE/PAPEL - c.1903 - LOCALIZAÇÃO DESCONHECIDA
A LEI ÁUREA – PROJETO PARA SELO – c.1903

Visconti procurou introduzir no Brasil a mesma visão partilhada por Grasset e outros artistas e arquitetos europeus, aquela de um artista a serviço das necessidades da nova sociedade industrial, participando ativamente do processo de configuração dos objetos utilitários fabricados pela indústria.

Esse papel foi desempenhado com sucesso por Christopher Dresser e, a partir de 1907, seria realizado de forma magistral por Peter Behrens, quando ele assume o posto de “consultor artístico” do grupo industrial AEG.[8]

Cabe comentar que tanto Dresser quanto Behrens muito cedo perceberam a incompatibilidade entre os excessos ornamentais do art nouveau e os requisitos de produção massificada da indústria, adotando então uma linguagem despojada de ornamentos e, no caso de Dresser, surpreendentemente reduzida a formas geométricas básicas.

Os dois designers também puderam realizar sua obra por contarem com um contexto francamente favorável, pois seus países encontravam-se na vanguarda do desenvolvimento industrial, e a necessidade de um profissional especificamente voltado para o projeto e configuração dos bens utilitários fabricados em série já começava a ficar clara entre os industriais mais esclarecidos.

O incipiente desenvolvimento industrial nacional pode ter privado Visconti de oportunidades de trabalho nas indústrias brasileiras, mas o mesmo não pode ser argumentado com relação às artes gráficas, e foi justamente nesta área que seu trabalho, carregado de influências do art nouveau, ganha maior visibilidade junto ao público.

 

NOTAS:

[1] O manifesto da Bauhaus afirmava: “O fim último de toda a atividade plástica é a construção. Adorná-la era, outrora, a tarefa mais nobre das artes plásticas, componentes inseparáveis da magna arquitetura. Hoje elas se encontram numa situação de auto-suficiência singular, da qual só se libertarão através da consciente atuação conjunta e coordenada de todos os profissionais. Arquitetos, pintores e escultores devem novamente chegar a conhecer e compreender a estrutura multiforme da construção em seu todo e em suas partes; só então suas obras estarão outra vez plenas de espírito arquitetônico que se perdeu na arte de salão.” Gesamtkunstwerk é o termo alemão para obra de arte total.

[2] Sobre Christopher Dresser, ver Christopher Dresser: a Pioneer of Modern Design, de Widar Halen. Phaidon Press, 1990.

[3] Hans H. Hoffstätter, Jugendstil: Graphik und Druckkunst. Rheingauer Verlaggesellschaft, 1987, p. 139.

[4] Ver Mucha: The triumph of Art Nouveau de Arthur Ellridge. Paris: Pierre Terrail Editions, 1994.

[5] Para uma completa descrição da obra de Eugène Grasset, recomenda-se a leitura de Grasset: Pionnier de l’Art Nouveau, de Anne Murray-Robertson. Bibliothèque des Arts, 1981.

[6] A escola foi fundada em 1881 e especializou-se na formação de professores de desenho para as instituições oficiais.

[7] Frederico de Morais, Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 111.

[8] Ver Industriekultur: Peter Behrens and the AEG, de Tilmann Buddensieg. MIT Press, 1984.

A MÚSICA - ESTUDO PARA VITRAL - GUACHE/PAPEL - 60 x 44 cm - c.1898 - COLEÇÃO PARTICULAR
A MÚSICA – ESTUDO PARA VITRAL – c.1898
MOTIVO ORNAMENTAL - ESTUDO PARA FRISO - AQUARELA/PAPEL - 49 x 41 cm - c.1900 - COLEÇÃO PARTICULAR
MOTIVO ORNAMENTAL – ESTUDO PARA FRISO – c.1900
MOTIVO ORNAMENTAL - ESTUDO PARA ORNATO - CRAYON/PAPEL - 64 x 50 cm - c.1900 - COLEÇÃO PARTICULAR
MOTIVO ORNAMENTAL – ESTUDO PARA ORNATO – c.1900
PAISAGEM ROCHOSA - ESTUDO PARA MARCHETARIA - GUACHE/PAPEL - 50 x 65 cm - c.1901 - COLEÇÃO PARTICULAR
PAISAGEM ROCHOSA – ESTUDO PARA MARCHETARIA – c.1901
LOS CIGARRILLOS PARIS - CARTAZ DE PROPAGANDA DE CIGARROS - NANQUIM E AQUARELA SOBRE PAPEL - 22 x 14 cm - 1901 - COLEÇÃO PARTICULAR
LOS CIGARRILLOS PARIS – CARTAZ DE PROPAGANDA DE CIGARROS – 1901
PAISAGEM - ESTUDO PARA MARCHETARIA - GUACHE/PAPEL - 52,2 x 44,3 cm - c.1901 - ACERVO DO SOLAR GRANDJEAN DE MONTIGNY - CENTRO CULTURAL DA PUC-RJ
PAISAGEM – ESTUDO PARA MARCHETARIA – c.1901
CAPA DO ANNUARIO FLUMINENSE - ZINCOGRAFIA - 19 x 14 cm - 1902 - COLEÇÃO PARTICULAR
CAPA DO ANNUARIO FLUMINENSE – 1902
VASO DECORADO COM ÁRVORES MARRONS - CERÂMICA PINTADA - h.17 cm d.14 cm - 1903 - COLEÇÃO PARTICULAR
VASO DECORADO COM ÁRVORES MARRONS – 1903
MORINGA DECORADA COM PERFIL E FLORES - EXECUTADA PARA A INAUGURAÇÃO DO THEATRO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO - CERÂMICA PINTADA - h. 28 cm - Ø 18 cm - 1909 - COLEÇÃO PARTICULAR
MORINGA DECORADA COM PERFIL E FLORES – c.1909
CARTAZ DA COMPANHIA ANTARCTICA - PROJETO PARA O PANO DE BOCA DO CASSINO ANTARCTICA - GUACHE E AQUARELA SOBRE PAPEL - 50,5 x 37,0 cm - c.1920 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ
CARTAZ DA COMPANHIA ANTARCTICA – c.1920
BRASÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO - ESTUDO - AQUARELA - 36 x 29 cm - c.1931 - COLEÇÃO PARTICULAR
BRASÃO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO – ESTUDO = c.1931
CARTAZ DO CURSO DE ARTE DECORATIVA DE VISCONTI - NANQUIM/PAPEL - 1936 - COLEÇÃO PARTICULAR
CARTAZ DO CURSO DE ARTE DECORATIVA DE VISCONTI – 1936