Gonzaga Duque

O Paiz - 2 jul. 1901, p. 1

Chamar-se-ia indiferença o quase silêncio que assediou a admirável exposição desse belo artista, se outro fosse o nosso meio social. Com melhor cabimento dir-se-á – incompreensão – esse menosprezo em que foi tida uma das mais completas, das mais importantes exposições de arte aqui franqueadas ao público.

Incompreensão e inoportunidade. Inoportunidade porque a hora é das piores, o dinheiro escasseia às bolsas mais volumosas, a existência tornou-se penosa aos melhores aquinhoados da sorte, e incompreensão porque Eliseu Visconti é um artista sincero e honesto, enobrecido por um ideal a que a vulgaridade não atinge.

Visão de idealista e espírito refletido de analisador, sensibilidade requintada e ponderação desenvolvida, lhe deram um equilíbrio que, raras vezes, se observa, tornando-o um profissional de incontestável valor.

Recordando a sua obra inicial, neste momento, a crítica vai encontrar na de hoje um adiantamento metódico e seguro, como derivante lógico daquela por processos dependentes duma esclarecida razão.

O seu primeiro modo de pintar, que algo lembrava o de seus considerados mestres, em particular do ilustre professor Amoedo, desenvolveu-se numa maneira delicadamente individual, escapando à olhadela estonteada do leigo ou do elementar, mas firmemente caracterizado em todos os detalhes da técnica.

Em comprovação de tanto bastariam aqueles estudos em dois palmos de tela, em cartões ou em tabletas, que estiveram expostos, encantadoras pochades de ocasião, cantos de paisagem em horas lentas de melancolia ou em fugitivos minutos de felicidade, pequenas cabeças impressionantes, dorsos desnudados, figurinhas surpreendidas num gesto, numa atitude, num instante, e aquelas soberbas academias desenhadas e coloridas com verdadeiro culto dos rigores da arte.

Nessas, como naquelas, o toque, a cor e a forma são dum mestre. O aproveitamento de seus nove anos de Europa foi completo. Não se lhe nota uma fraqueza no modelado, a linha estrutural sai-lhe precisa e bem lançada, as tintas não se empastelam, não se precipitam, não se confundem e a totalidade, sem preocupações de agradar maiorias ou respeitar ditames da moda, é vencida naturalmente, por um extraordinário conhecimento das nuanças, das meias tintas e dos valores.

A sua pintura é nítida sem pedantismo e é forte sem violências.

Retratos ou cabeças d’impressão, o busto tumescente de uma senhora em corsage castanho sobre vivos rosa fanada, o perfil atento duma rapariga que traz argolas d’oiro nas orelhas, a face sangüínea duma normanda, talvez, de chapéu escuro, que ficou fixada na lona do quadro, são o bastante para nos convencer da maestria do pintor e provam de modo irrefragável que ele é senhor do seu delicado mister.

A PROVIDÊNCIA GUIA CABRAL - OST - 180 x 108 cm - 1899 - PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO
A PROVIDÊNCIA GUIA CABRAL

É intuitivo que quem possui o desenho submisso ao voluntário movimento da mão e a palheta pronta, quem claramente vê e conscienciosamente transmite a imagem à tela, não falseará no sério trabalho da composição, pelo qual se documenta o mérito de um artista. Encontram-se casos negativos. Artistas… se por assim devem ser nomeados… artistas existem, que copiam com acerto o modelo, alcançando feliz resultado a ponto de iludirem amadores sagazes com aparências de um real talento, mas que, no puro exercício da arte, no que ela tem de difícil pela concordância de conhecimentos adquiridos e qualidades originárias -a sua composição inventiva – descaem para os vulgarismos ou esmorecem no incompleto.

Eliseu Visconti, porém, não está nesta numerosa classe de copistas mais ou menos hábeis. A sua composição, em que há clarões de originalidade, fosforescências de inspiração, obedece a um sábio conjuntamento de qualidades desenvolvidas a poder de perseverança e à força de um talento que nunca se deslumbrou com os fáceis louvores da multidão.

Calmo e modestíssimo, laborioso e absorvido por seu sonho – o luar fascinante do almejo realizado em que os superiores cravam o olhar febril – toda sua obra, desde a primacial até a de agora, respeita a uma orientação que, se aparentemente falha na unidade por ser variada, sobressai num relevo indelével pelo que contém de sincero na emoção reverberada, de sério no trabalho harmonizador da composição e de firme no esforço para uma fatura simples, exata e perfeita. O que, ao princípio, foi uma prova do excesso voluntivo, de dedicação ao estudo, terminou por ser um culto, o fanatismo dum possuído que há de, naturalmente, levantar despeitos aos incapazes da vontade e excitar sarcasmos à maleabilidade dos fracos.

Tomarei, por desencargo de asserção, duas obras opostas, ambas de grande merecimento e ambas resultantes d’emoções diversas: Pedr’Alvares Cabral guiado pela Providência e a Dança das Oreadas.

Na primeira foi a concepção moderna, foram as indefinidas tendências estéticas de um tempo agitado, ansiante e indeterminado nas suas aspirações, que presidiram a criação do motivo e a sua execução. O artista compreendeu que tratar de assunto lavrado, já longamente debastado por grande número de interpretadores, o obrigava a uma concepção original: sintetizou-o, pois, numa forma alegórica. Ainda, por esse modo, seria preciso desviar-se das demasias dos belos efeitos sem significação, dos recursos do chic que prejudicam a seriedade idealizadora, e limitou-se, exclusivamente, à alegoria, na sua verdadeira expressão. A figura eminente, Pedr’Álvares Cabral, é representada, no seu tipo tradicional e nas suas vestes da época, mas em o quanto do homem se faz necessário à glorificação – a sua cabeça em que reside a inteligência, e o seu peito, sede convencionada para os sentimentos afetivos, em que, nesse heróico mareante o amor da pátria se reanimava a cada latejar do coração. Em seguida as cabeças do historiador Vaz de Caminha, do religioso frei Henrique e, num plano inferior, o do piloto da nau. Um anjo, semi-velado n’ampla gaze luminosa, corpo envolvido pela luz anunciadora do nascente, acompanha o navegador lusitano que governa o timão. Dos dedos desse Enviado recebe o aventureiro capitão a idéia inspiradora que o leva, pelo isolamento dos mares, a procurar paragem ignorada com desprezo da retorna veleira em busca da frota dispersa… E vai confiado no Destino, e vai conduzido pelo estranho nunca dantes sulcado por naves d’Ocidente, iluminado pelo flamejante facho da sorte benigna que o imortalizou na história das navegações e das conquistas.

O artista concebeu o assunto duma maneira original, abandonando fórmulas que a usança tornou indefectivas. É, conseguintemente, uma criação sua, originalmente sua, executada e pintada sem convenções, e onde a coerência do trabalho compositor está revelada pela concatenação de todos os detalhes, desde a cor bonançosa da solidão oceânica ‘té a meia vestidura flamante do Anjo, desde o tom claro, de manhã surgida, que envolve o quadro, ‘té a revoada, em debuxo de visão, de pombos brancos que passam, pelo primeiro plano, numa fileira festiva de prenúncios de paz e de promessas, como a exegese dum símbolo.

ORÉADAS - OST - 182,2 x 108,0 cm - 1899 - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ - MEDALHA DE PRATA NA EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS EM 1900
ORÉADAS

Na Dança das Oreadas o processo é diverso porque a emoção lhe veio da poesia comovedora dum tempo extinto; ele a recebeu duma leitura, transportando-se a uma era longínqua. Em Pedr’Álvares foi o pensamento que originou a imagem, nas Oreadas foi a evocação que esboçou o assunto.

Oreadas – chamavam-se as ninfas dos montes e dos bosques, na suntuosa e fecunda mitologia. Por declínio de tardes, ainda sob o derramo d’oiro polvilhado do sol, elas surgiam de encantados esconderijos, ao tabefes nas panderetas e sons de avenas, para a ronda saltitante de enamorados, às mãos dos zagais mancebos. E, na cadência das danças, lá se iam por meandros de vales e touças de montes, entre descantes e volteios, numa folgada Seranda de rapazio gárrulo…

Interpretando assunto de tão remota criação, o artista procurou dar-lhe o tom característico, fazê-lo em uma suave reconstrução dos sentimentos clássicos com os recursos da técnica contemporânea. Aliou à maneira antiga o expressivismo ingênuo do motivo, que ali sentimos se nos comunicar, com a temulência dum perfume exalado pela gracilidade, dificilmente igualável, de suas corretas figuras.

O aspecto sadio desses corpos em que a adolescência está desabrochando com o frescor duma veiga em maio, a plástica rítmica de seus movimentos, a alegria franca de seus rostos inocentes, compõem um todo adorável de ingenuidade e júbilo, de bucolismo e venturas, a que serve de adequado, perfeito, imprescindível enquadramento, por contraste, a discreta e risonha paisagem do cenário.

É tão linda, tão linda! essa obra, que nos escraviza a contemplação por horas sem conta, e nos conduz, imaterializados e vencidos, às teogonias pagãs, através a tocante graça dos elegantes pintores do século dezoito e a quentura colorista do Renascimento italiano!… E só voltamos à enfadonha realidade ao pensar, com lástima, que não existe, nesta preciosa terra de entranhas auríferas, uma fortuna à disposição d’algum homem de cultivado e nobre gosto, senhor de morada rica, para embutir na parede de salão condigno essa dulcíssima pastoral de volúpias imáculas, onde vive, com todo o encanto de um cobiçado mistério de amor, aquela loura figurinha de púbere, alegre e ingênua, que encobre a garbosa linha de haste flórea de suas formas na transparência dum tecido tão leve ao vento como é a agilidade de seu corpo no espaço!…

Tem-se, portanto, nessas duas obras diferentes no assunto, diferentes na interpretação, mas iguais na habilidade d’exprimir; marcadas pela mesma pincelada, a super-emotividade d’um artista em plena posse de seus dotes, apto a vibrar com tudo que for belo, donde a vantagem de não se repetir, de não fatigar o olhar curioso do amador!…

A CONVALESCENTE - OST - 90 x 58 cm - c.1896 - ACERVO MASP
A CONVALESCENTE

É por isso que a diversidade do assunto lhe acode à imaginação. Ao lado dessas duas obras aparece a Convalescente que se lhes contrasta. Convalescente é composto de três figuras – a que dá título ao quadro, em penteador branco, sentada num fauteuil junto de larga janela banhada de sol que se escoa por stores cremes, um tipo de homem moço que a beija e uma rapariga serviçal que traz a dieta. Como se deduz é um quadro de gênero, rigorosamente naturalista. A figura de homem, colocada por detrás da cadeira, onde descansa a convalescente, constitui preciosíssimo trabalho de pintura, por seu enorme destaque, pela admirável expressão da sua atitude em que se presume a delicada idéia do quadro, pois do rosto de ambas as figuras apenas se percebe parte, por ter o homem o alto da cabeça inclinado para o espectador e a face sobre o da convalescente.

Dirão, talvez, os restringidos n’amarga intolerância escolástica, que essa obra não é igual, não tem uniformidade e falha na sua característica individual, por visível dessemelhança de quadro a quadro.

Ora, concedido que tão belo motivo possa conter um episódio da vida comum, quando uma cena mitológica ou uma alegoria, concluir-se-á que maior será o mérito do artista se ele, em cada um desses motivos, conseguir fixar a atenção do observador, dominá-la e interessá-la pela sinceridade do seu poder comunicativo. O interpretar os três motivos, vivendo neles, isto é, sentindo-os bem intensamente até dar a cada qual a feição que lhe é própria, sem os unir entre si, sem que esse recorde aquele e aquel’outro por serem de naturezas opostas, é tudo quanto um artista independente pode desejar, e como já foi louvado na obra esculturada de Constantino Meunier, na obra atual do paisagista Claude Monet, na obra gravada e pintada do falecido Félicien Rops.

A afinidade flagrante, que se pretende numa obra, só pode ser apreendida em assuntos congêneres. Atenda-se, portanto, aos tipos mais prediletos do artista, aos assuntos que mais se aparentam, as emoções que mais comumente o abalam, e por esses e o estudo com minúcia e atilamento.

Em Visconti o assunto que mais se repete é o da representação d’adolescência, que parece o encantar, desde a sua primitiva maneira de pensionista na Europa. Olhe-se, pois, para essa Gioventú, distinguida como a Dança das Oreadas com a ambicionada medalha de prata da Exposição Universal de 1900. A casta beleza que observamos na Dança, frisantemente na citada figurinha loura, a que a ortodoxia moralista não deformou com a insexualização de irrisório decoro, aquela casta beleza impressionante que nos deixa as pupilas umedecidas de ternura, transunda mais comovedora nesse adorável pré-rafaelismo que nos fixa, abstrata e tímida, como aturdida do esplendor da vida ardendo no seu franzino busto de menina a se fazer moça… Olhe-se, pois, para esse incomparável Beijo, que consta apenas de duas cabeças de crianças; uma – de menino – cabelos escuros e rentes, olhar firme e audaz, natureza propensa à luta que lhe dá, prematuramente, a vaga energia dum pequeno cavalheiro; outra, de menina carinhosa, anjo sem asas, trazendo à alma forte do irmãozinho a suavidade dum consolo na meiguice dum beijo.

GIOVENTÙ - OST - 1898 - 65 x 49 cm - MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES - MNBA - RIO DE JANEIRO/RJ - GIOVENTU - MEDALHA DE PRATA NA EXPOSIÇÃO UNIVERSAL DE PARIS EM 1900
GIOVENTÙ

Agora, que ele alcançou sua maneira definitiva, porque hoje em dia o artista não se limita a um determinado processo pictural como entre os antigos, esses motivos, de dificílima reprodução, constituem a acentuada característica do seu individualismo que se destaca, em conjunto, pela pureza duma arte desviada das perturbações eróticas da contemporaneidade, arte serena e humana – que fala ao espírito, que alivia o coração com uma doçura só facultada aos que têm os olhos postos na claridade dum futuro próximo.

E foi por este ideal enobrecedor que ele chegou à arte decorativa, conquistando seus segredos n’aprendizagem do famoso atelier Grasset.

É necessário atenuar os violentos efeitos da nossa civilização, adelgaçar a rudeza do utilitarismo com a mão macia e branda da graça. É necessário trazer ao delírio industrial destes tempos, que foi o espectro de Ruskin, as miragens do engano e da compensação, domando a ferocidade humana com o deslumbramento da forma e da Cor, para que se não perca de todo o resto de generosos sentimentos ainda existentes na espécie soberana sobre a Terra… É de lamentar, no entanto, que as indústrias no Brasil vivam, mesquinhas e foscas, na servilidade dos maus modelos vindos do estrangeiro, porque, se assim não fosse, encontrariam em Eliseu Visconti o espírito animador de seus produtos, o criador de sua originalidade, de seu mérito artístico, desde que o governo, distraído dos seus deveres, encharcado de politicagem, não saiba aproveitar numa utilíssima Escola ou, pelo menos, numa aula de arte decorativa para honra e proveito nosso.